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quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Alforria, de Roberta Tanabe

Alforria

Roberta Tanabe

Leia a seguir um conto inédito do livro Mosaico: vidas em reinvenção, de Roberta Tanabe. Que será lançado dia 30/10. O lançamento será no Restaurante Silva, em Botafogo (Rua Professor Alfredo Gomes, 14, Botafogo, Rio de Janeiro - RJ), das 18h30 às 20h30.



Como mãe sempre quis o bem do meu filho, nas menores e maiores escolhas que fiz. Claro que volta e meia tropecei mesmo movida pelas melhores intenções. Que atire a primeira pedra, quem nunca se enganou. Quando descobri que precisaria decidir em seu nome questões muito mais sérias do que as que até então tinha encarado, fiquei muito tensa. Eram intervenções que modificariam seu corpo e sua forma de experimentar o mundo. Estava em prova nossa capacidade de adaptação e superação das adversidades. Refutei qualquer anúncio de que sua vida seria limitada e breve. Durante todo tempo, buscava a cura ou pelo menos o controle da sua doença. Persegui essa meta como uma obstinação. Onde houvesse algum recurso a mais, que pudesse se traduzir em esperança, lá estava eu a buscá-lo. Procurava promessas que pudessem oferecer alguma nova chance de melhora, ainda que remota. Foram muitos os tratamentos que experimentamos, em diversas linhas de cuidado, dos mais tradicionais, aos mais alternativos. Recorri a absolutamente tudo que se possa imaginar.

Embora o esforço empreendido na luta, sua situação ia se agravando, conforme o curso natural da doença. A cada nova internação, suas restrições se alargavam. Descia mais um degrau em relação ao patamar anterior, ao qual nunca retornava. Percebi que caminhávamos para um destino inexorável, que sempre neguei. A cada piora insistia para que fosse feito cada vez mais, queria usufruir tudo o que a Ciência tinha para oferecer de mais sofisticado e moderno. A medida do meu amor era materializada no meu desejo de tê-lo junto a mim, da maneira que fosse. Meu menino foi se tornando progressivamente mais limitado e a ele sendo naturalmente acrescidos os suportes necessários para que continuasse vivo. Não o reconhecia mais, nem a mim. Estava de tal forma obcecada em conseguir um tempo a mais para nós dois, que me tornei irracional. Ele me olhava em súplica para que enxergasse a desumanidade a que estava sendo submetido. Eu respondia seu pedido de ajuda, com solicitação de mais intervenção tecnológica. Nunca desistiria dele, repetia inúmeras vezes. Negava qualquer aproximação de quem quisesse sugerir o contrário. Me rebelei contra todos, agarrada ao fio de vida que ainda lhe restava. Passava noites em claro vigiando cada pequeno gesto dele e de todos que se aproximavam. Foram meses assim.

Adormecia de cansaço e em sonho o encontrava cheio de vida como antes. Acordava e a situação real era outra. Aquilo se tornou um pesadelo. Em um determinado dia, me abraçou e pediu com toda doçura: mamãe me tira do castigo. Despertei sobressaltada, olhei em volta e tudo estava quieto. Respondi seu apelo envergonhada, pedindo que me perdoasse pelas escolhas que tinha feito pensando em mim. Autorizei sua alforria e o monitor logo registrou o traçado do seu adeus. 






Roberta Falcão Tanabe nasceu em 1973 no Rio de Janeiro. Escolheu a Medicina como profissão e a escrita como parceira.

Pelos caminhos da ficção reconstruiu o cotidiano de cuidar de crianças, emprestando nova vida aos personagens, objetos e espaços e às relações estabelecidas entre eles. Trocou as posições, desmontou olhares cristalizados e religou fragmentos criando configurações originais. Acredita que a vida de cada um é um mosaico em eterna construção, que se desenha a partir dos encontros e das experiências partilhadas. Nas novas ordenações e sentidos propostos, há o que ficou de si e o que foi incorporado do outro em nós, na reinvenção da vida.







4 comentários:

  1. O olhar atento e o respeito ao próximo devem estar sempre presentes na nossa vida, de modo que a dignidade do ser humano integral seja respeitada como criatura de Deus! A Dra. Roberta tem essa sensibilidade e sempre a coloca a serviço do outro!

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  2. Parabéns Roberta, pela coragem de compartilhar suas experiências e reflexões através de sua escrita.

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  3. Maravilhoso ver a sensibilidade, tornada letra. Viva Roberta! Viva a escritora que nasce. Martha

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  4. Parabéns Dra. Roberta. O escorso apresentado nos induz à leitura do conteúdo que, sem dúvida, falará profundo aos nossos sentimentos.Jorge Quintal.

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