sábado, 3 de julho de 2021

Uma platéia vazia, Lúcio Autran

Vaso grego: Bacantes e Dioniso

 
“Cesse tudo o que a musa antiga canta que outro valor mais alto se alevanta”
Os Lusíadas – Canto I
Luís de Camões,

Semana passada, neste blog, Oswaldo Martins e Alexandre Faria escreveram um artigo da maior felicidade e urgência, a que deram o sugestivo título “A literatura contemporânea – de como a poesia deu no que deu”.

São vários os pontos que abordaram, e olhem que não foram todos os aspectos possíveis dessa discussão urgente, “o valor mais alto” camoniano, desenvolver cada um deles demandaria um espaço que não tenho e abusarei, porém, há dois ou três que gostaria de ecoar neste modesto artigo. Não no tom escolhido pelos autores, mas meio tom abaixo, como é do meu feitio e maneira de ser no mundo, dos quais me é impossível fugir.

Logo no início dão o primeiro cruzado: “na cena da poesia contemporânea, por exemplo, pululam casimirinhos em torno de neobilacs de araque. Todos parecem ter trocado o paletó no encosto das cadeiras vazias das repartições públicas dos ministérios mil pelas cátedras das faculdades de Letras do país”.
 
Há muito me ronda a convicção de que, se o empresariado brasileiro sempre mamou nas tetas da Viúva, seus escritores também não ficaram atrás, que, em boa parte, escreveram suas obras graças aos “paletós nos encostos das cadeiras vazias das repartições públicas” de um funcionalismo público de compadrio, como sói acontecer nestes tristes trópicos, o que, frise-se com todos os destaques, em nada ofusca a eventual qualidade desses escritores. Mas o que me chamou a atenção foi a coragem de adentrar no terreno minado das academias e na menção oportuníssima a uma literatura que ecoa “protestos que retroalimentam o status quo” Num país sem a antiga crítica semanal, ou, vá lá, sem os rodapés dos suplementos literários, todos infelizmente exterminados (causa ou efeito da ignorância? O velho ovo de uma penosa que há muito já não põe), que, embora desde sempre voltados para o exercício tão brasileiro do compadrio ou do velho jabá, ainda atuantes, era um eco possível aos poetas, escritores e útil para a formação de leitores. O que restou?

Não temos mais leitores, e talvez nunca tenhamos tido de verdade, neste país de analfabetos de vários manequins, incluídos os já alfabetizados, não apenas como fruto de uma sociedade profundamente injusta, pois mesmo aqueles que tiveram oportunidade de usufruir de um bom ensino formal, o que vemos na maior parte de suas casas é o deserto das paredes nuas de livros, a ignorância branco-neve da boçalidade, uma das trágicas heranças da ditadura: uma burguesia analfabeta e corrupta, e isso em parte explica nosso atual estado de coisas. Mas, tristeza, boa parte dos nossos escritores tampouco são leitores, como veremos adiante.

Fecharam-se esses canais tradicionais, que mal ou bem funcionavam, de leituras críticas e de divulgação, reduzidos ao mínimo os espaços a isso dedicados na grande imprensa nos “segundos cadernos”, ocupados pelo deus mercado e pela ação entre amigos da produção acadêmica, o que dá quase no mesmo. Vemos hoje, como melhor descreveu o artigo fonte, que “a crítica elege, os eleitos agradecem a crítica que elegem. Ciranda, cirandinha, vamos todos cirandar?”

Aos exilados das “cátedras das faculdades de Letras do país”, restou-nos, ai precariedade, pois rapidamente desaparece aos pés dos monitores qualquer diálogo mais interessante, a migração para as redes sociais e outras mídias, que, não nego, propiciaram alguns encontros interessantes e o surgimento de um mercado fora do mercadão, como testemunham as inúmeras pequenas editoras que temos visto surgir, mas, por outro lado, deram voz à estupidez, estupidez esta que abrange a literária.

Mas, é extenso esse assunto e quase perco o foco, voltemos.

Essa predominância acadêmica como raro eco do fazer literário, embora, sem dúvidas, não generalizo a esse ponto, muitas vezes louvável, com teses de inegável valor, e talvez o que existe seja apenas uma minoria barulhenta e minha visão está distorcida pela distância. Talvez. Contudo, não é este o ponto, essa, sejamos elegantes, primazia das cátedras, como não poderia deixar de ser, trouxe com ela inúmeras consequências nefastas, das quais destacarei somente algumas poucas que me parecem mais incômodas.
 
A primeira delas, mas não a principal, foi abeirar-se no rio da literatura um Narciso exacerbado e esquisito, e por que esquisito? Porque são patéticas vaidades num jogo de espelhos infinitos e incensos mútuos que lhes turvam a vista, traduzindo-se numa exaltação recíproca, e, embora sem público, batem bumbo para seus iguais, enquanto disputam a carniça pouca da literatura, brigando pela ribalta de uma plateia inexistente. Ou melhor, uma plateia de espelhos. 

Claro que alguns caciques e pajés recebem as melhores bumbadas e lufadas da fumaça da vaidade. Deu-se comigo um fato inusitado que exemplifica ao paroxismo o que estou dizendo. Tive a oportunidade de ler - não, ninguém me contou - uma dessas notórias pajés, cujo nome não declino, para não fulanizar a questão, teve a pachorra de me dizer, pasmem: “só leio autores que me leem”. Ah, pretenciosa, talvez a senhora tenha esquecido do triste fim de Narciso, paralisado ante a própria imagem, com fome e sede, envelhecendo na sua solidão sem Eco, no seu caso, ouvindo os ilusórios ecos travestidos de alunos e adoradores, e, pior, sem flor na qual se metamorfosear. 

Disponibilidade generosa? Há muito se perdeu.
 
Outra consequência, esta mais perigosa e menos divertida, pois repercute na formação de leitores, é a hipervalorizarão do autor. 

Sempre tive especial antipatia por isso, aprendi em casa que o autor pouca importância tem, pois sua obra, coisa saudável! uma vez publicada, dele se liberta. Está certo que no ambiente acadêmico, importante ressalvar, justifica-se o estudo mais detalhado da vida do autor, como subsidio para suas fontes emocionais, suas gassetianas circunstâncias, suas influências, tudo isso é válido no estudo aprofundado de uma obra e para elaboração de teses, o problema é quando essa leitura ultrapassa os muros das universidades e se derrama sobre o leitor comum, que resolve, para ser moderninho e alimentar sua filantropia política e social, fazer disso uma “causa para uma heroica luta”.
 
Vemos hoje a preocupação se o autor era branco, reacionário, machista e por aí vamos, e esquecemos de uma singela pergunta: sua literatura era boa? Ou a literatura, para ser boa, precisa atender a certos requisitos? Ficar obcecado com o que pensava o autor é voltar no tempo e esquecer a lição de Mallarmé, de que a poesia se faz com palavras, não com ideias. Coisa mais antiga, pois não? E se pretendem contemporâneos... e, para ficarmos na França, se lessem, conheceriam a lição proustiana, em “O Tempo Recuperado”: “A verdadeira arte prescinde de manifestos e se realiza em silêncio”.
 
Sequer originais são.
 
Machado era ou não negro? E bateiam garimpando racismos escondidos no manancial da literatura machadiana. Bacana que tenha sido negro e que isso tenha sido resgatado, nada contra, muito ao contrário, mas minha pergunta é: e se o Velho Bruxo fosse uma bosta de escritor, teria da mesma forma contribuído para a formação de uma literatura e identidade brasileiras? A pergunta responde-se a si própria.
 
Será difícil perceber que há uma nada sutil diferença entre escritores, sociólogos e jornalistas; ou que a etimologia da palavra "personagem" vem de "máscara teatral" (etrusco) ou "persona" (latim), e não se confunde com a pessoa; e que a palavra "ficcionista", desculpem o truísmo, mas é preciso, vem de ficção?
 
Essa leitura crítica se volta para a vida pessoal do autor, suas opiniões. Quando assimilarão que a obra é maior do que seu autor, pelo singelo fato de que, repetindo o que já disse inúmeras vezes, se a obra eventualmente o engrandece, seu cotidiano necessariamente o amesquinha, salvo para as vestais de plantão e demais moralistas disfarçados?
 
Esse raciocínio é, como disse, além de falacioso, perigoso para a formação de nossos parcos leitores, tão poucos, pobrezinhos, porque, ora, se forem consideradas a opinião, a ideologia e a vida do autor, como condição para sua leitura, reduzem-se enormemente as estantes inexistentes de sua casa, e ele está dispensado - isso partindo da generosíssima hipótese de que os entenderiam – de ler Goethe, um reacionário (sim, o era, a despeito de algumas leituras meio tortas de alguns críticos marxistas, como Luckács, Schlaffer, além do próprio Marx, que queriam ver no Fausto prenúncios revolucionários de um escritor genial que tinha pânico de uma Bastilha em Weimar); nosso Nelson Rodrigues, outro notório e assumido reacionário; ou o gigantesco Borges, que simpatizou com a ditadura argentina; e, numa vertente oposta, mas igualmente moralista, Villon, por ladrão, homicida e bêbado, que perigo! Isso não os torna menos geniais e fundamentais para a literatura.
 
Essa conduta termina por nos levar a uma literatura tópica, retórica, que, embora se venda como revolucionária, é, sim, reacionária. Isso que prefiro chamar de “literatura de boas intenções”, estas que costumam pavimentar certas avenidas nada recomendáveis. São escritores e leitores “bem intencionados”, prontos para partir como cruzados do bem, quixotes de araque contra inimigos imaginários. Escrever, reescrever, ler, ora, para quê? Basta revestir-se de boas intenções e “inspirações” (escritor que não lê costuma ter muita inspiração), e, pimba! Eis o escritor pronto! E assim inventamos o escritor que não lê. Dessa “literatura de boas intenções” para uma conduta moralista, óbvio que seria apenas um pequeno passo (terreno minado, poeta), outra consequência desse “ambiente literário”.
 
Temos, hoje, dois moralismos nos acossando, um, o tradicional, reacionário, de “direita”, cristão neopentecostal, como temos visto nessa excrescência que nos governa, com suas damares e danações; outro, talvez um pouco menos letal, mas também perigoso, por sutil, o da literatura bem-intencionada, com seu moralismo na canga. O reinado de uma Rainha Vitória bicéfala.
 
Temos que andar pisando em ovos com o que falamos, escrevemos e até do que rimos, tudo se tornou muito perigoso nesta selva, se nos escondemos no nosso canto solitário e delirante, os inquisidores, os torquemadas da modernidade, na sua sanha censora, nos ignoram ou nos agridem, e o ar que já era rarefeito desaparece de vez. Nos “cancelam” e nos atiram ao exílio onde, ironicamente, já estávamos, longe das margens da contemporaneidade. As editoras contratam um tal de “leitor sensível”, que, juro, a primeira vez que ouvi falar, imaginei um leitor dotado de grande sensibilidade para a escolha de autores, mas, não, era uma espécie de consultoria para os editores saberem se tal ou qual livro passaria pelo “Index Librorum Prohibitorum”. E os jurados dos prêmios literários também são muito sensíveis.
 
Querem reescrever a gramática e refundar a língua, tudo em nome de uma suposta identidade, mas que decepção, amigo, sinto dizer-lhe que quem faz a língua é... o povo! Ele mesmo, essa entidade mítica. 
 
Os escritores a sedimentam, os gramáticos a estudam e sistematizam, e a poesia, disse João Cabral com felicidade, é o laboratório da língua. Mas, essencialmente, caríssimos, é o povo quem faz a língua. E assim, uma suposta postura revolucionária se despe e expõe a feiura da sua nudez autoritária. Além de inútil, pois se presta apenas para aplacar com bons propósitos as consciências culpadas, é acreditar que palavras são capazes de, por si próprias, mudar uma sociedade que tem a iniquidade enraizada. E as últimas eleições são a prova empírica disso.
 
Querem escolher os temas, quem pode ou não” falar” e em que lugar, mas não percebem que isso irremediavelmente excluirá qualquer possibilidade de uma personagem analfabeta. Afinal, ela não escreve. Coisa estranha essa proteção.

Dá-se mais importância ao tema do que à própria poesia que se lê, quando aquele é apenas um suporte, como a tela, o metal, o mármore, as doze notas musicais em outras formas de arte e o enredo para o romancista, suportes que o autor usa para o que verdadeiramente interessa: as questões intrínsecas do fazer estético, sem prescindir, e isso é óbvio, dos ecos do presente, ali representado, ecoando, mas não imperando, dispensada a ourivesaria literária. Com dizia aquele romancista do qual não declinei o nome, “o enredo é uma forma de distrair o leitor para lhe bater a carteira”. Este o ponto, deve-se bater a carteira do leitor, ou, como talvez preferissem Oswaldo e Alexandre, dar-lhe, além daquela acertada nos poetas bem intencionados, uma pedrada no quengo, e depois limpar o chão com um lençol de palavras, e deixá-lo pingando nas praças, em forma de uma poesia sanguínea, trágica, como trágica e contraditória é a realidade, e não anódina como qualquer forma de moralismo.

Despencamos nos abismos de uma literatura utilitária, servil a causas, submissa a interesses diversos, o que, na história da arte, invariavelmente resultou em desastres de proporções hecatômbicas. Uma literatura, além de utilitária, de circunstância. É óbvio que, como disse, não podemos fugir de nossas circunstâncias, especialmente no Brasil de hoje, pois seria deixar cair nas sombras da alienação este tempo a ser lembrado por nossos netos, para que não se repita, a tragédia que tomou conta do Estado brasileiro, um crime imperdoável. E eu mesmo me dei conta que “um valor mais alto” gritava por mim. 
Porém, isso, o que também é óbvio, não dispensa o insano trabalho do escritor “sem inspiração” e não se confunde com uma literatura de circunstância, que se sobrepõe e ofusca a obra, esquecendo-se que o que se faz, ou tenta se fazer, é arte. E assim tem sido desde de Homero, Virgílio e Antígona, de Sófocles, todos pontos mais altos da literatura e essencialmente políticos.
 
De tudo isso, para não nos alongarmos mais do que já fizemos, resta-nos uma triste constatação: não há (boa) literatura sem isolamento e sem leitura, como também não há sem o entusiasmo dos ritos órficos - o contrário do bom comportamento virginal dos bem-intencionados - e era, notem, como “entusiasmos” que os órficos se referiam às celebrações no altar de Baco. Mas, por outro lado, também não existe qualquer forma de arte sem o equilíbrio apolíneo da disciplina, que só na solidão alcançamos. Perdemos o necessário equilíbrio entre Apolo e Dioniso, que deve nortear o fazer literário.
 
Claro que nem todos trabalham dessa forma e não estão em busca de “leitores “sensíveis”, mas é inegável que parte considerável da nossa literatura, talvez audível por barulhenta, abandonou o rigor de uma saudável autocrítica, e vestiu-se “pundonorosa” para os ritos das bacantes e dos cultos dionisíacos, para se transformar neste convento triste e tedioso de constritas Carmelitas Descalças.

Nenhum comentário:

Convocatória

Envie seu texto para Blog da TextoTerritório - "Erotismo e saúde"

  Milo Manara - Enfermeira Envie sua participação sobre o tema "Erotismo e saúde" para o Blog da TextoTerritório. Milo Manara - Nã...