As questões de ordem humanitária
deveriam nortear a vida das pessoas, o respeito à dor alheia, a luta para
acabar com as diferenças sociais, que geram os despossuídos, a luta pela
dignidade dos que não professam as mesmas crenças, as mesmas escolhas sexuais.
A luta contra essa mancha vergonhosa, gerada pelo extermínio e pela escravização.
A luta para que todos tenham o direito de ir e vir em segurança, para o lugar
em que queiram assentar suas vidas e criar suas famílias. Direitos comuns à
noção de humanidade e de cidadania nunca deveriam ser conspurcados,
vilipendiados, destruídos.
Quando se recebe a notícia de que
uma pessoa foi assassinada por oitenta tiros disparados pela força de repressão
do Estado – que deveria servir aos cidadãos – a sensação ilegítima do medo, do
pavor que cada um tem o direito de sentir contra a finitude da vida, se
transforma no mais desentranhado horror.
Quando se percebe – através de
veículos oficiais, apoiados pelo grosso dos empresários da fomentação de uma
economia atrelada ao rentismo, e a logística que as propostas recebem das
mídias comprometidas com a especulação – quando se percebe que os direitos à
vida digna após anos de trabalho são achincalhados, culpabilizados e
destroçados pela ilegítima ideia de que se deve salvar a nação, quando na
verdade os que se salvam na nação são os muito poucos, a sensação atroz do
medo, do pavor que cada um tem o direito de sentir contra a vida futura que
lhes é roubada, se transforma em uma sensação do horror de vagar pelas ruas,
como zumbis à procura dos despojos, das migalhas, das sobras deixadas pela mesa
farta e ilegítima dos que assaltam as pessoas comuns, munidos das armas
requintadas com que se protegem.
Quando a escola pública é
assaltada por ideias das crenças únicas, quando o diálogo, que deveria ser o
elemento insubstituível e base de qualquer educação, é violentamente rompido,
quando se busca contrapor o senso histórico de justiça, que analisa os períodos
obscuros e ditatoriais da nação e se incentiva a delação, a sensação de medo se
instaura como horror, no sentido conradiano, e a percepção de que o coração
anda nas trevas se torna se torna tão palpável, como um pau de arara.
Vê-se a ordem humanitária morrer,
e por isso é necessário reinventar a luta e por isso são necessários todos que
ainda procuram salvar a dignidade. Salvar a capacidade de se emocionar, de
sentir que as coisas do mundo ainda tocam as fibras do que se percebe – ainda
que minimamente – humano.
A
alma mesquinha e incapaz de humanidade é aquela que saboreia os despojos
do homem, é aquela que comemora a prisão de quem quer seja, sem compreender a
dor, sem compreender as chagas que deformam o rosto da vida, sem compreender
que só os monstros, como eles se mostram, são capazes da indignidade maior,
estampada pela história no holocausto, na fome de Biafra, nos assentamentos
árabes, em Guantánamo, no doi-codi, na morte pelos mares dos milhões de
refugiados.
Os monstros só possuem uma cara.
A da iniquidade.
(oswaldo martins)
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