Silêncio e caos
Vilma Costa
Resenha do livro Venta não, de Alexandre Faria publicado no jornal Rascunho, em novembro/2013.
Venta não, de Alexandre Faria, reúne noventa poemas subdivididos em dois grupos. O primeiro, “tudo muito sempre”, possui oitenta e um poemas. O segundo, “o pai era um”, agrupa os nove restantes, cada qual formado por nove versos. Há uma estrutura diferenciada entre os dois blocos, tanto do ponto de vista formal quanto de conteúdo semântico. A numeração desses textos, e não as páginas do livro, chama a atenção pelo rigor linear e crescente do primeiro bloco (1 a 81), enquanto os nove últimos se apresentam em ordem inversa (de 90 a 82). Podemos considerar que a ordem numérica quebrada com a segunda parte do livro, além de estabelecer um corte entre as duas, põe em questão a equação matemática. Sugere que o livro é para ser lido não apenas do início ao fim, mas do meio ao fim, do fim ao início, do fim ao meio — como deve ser lida qualquer intrigante coletânea de poesia.
Uma breve consulta virtual aponta a ligação com o livro chinês Tao te ching (O livro do caminho e da virtude), atribuído a Lao Tzi, uma das mais conhecidas e importantes obras da literatura da China, supostamente escrita entre 350 e 250 a.C. do calendário ocidental, dividida também em oitenta e um fragmentos e ensinamento filosóficos. Alguns destes elementos são re-semantizados, outros confrontados com questões contemporâneas e mesclados com novos conteúdos, ou reafirmados através do tempo, nesse aqui e agora. Homenagem, reinteração, paródia, pastiche? Talvez um pouco de tudo, ou nada disso. Sobrevivem nos poemas de Faria, além do número de capítulos da primeira parte, algumas questões sobre o tempo, a busca inútil de origem, a simplicidade, a contenção de paixões intempestivas, a crítica à pretensão de controlar o inexorável da vida. São também fragmentos sem títulos, sem letras maiúsculas (como no alfabeto chinês), econômicos de pontuação e conectivos.
Os poemas de “tudo muito sempre” carregam entre si uma estreita relação, mas se distanciam dos de “o pai era um”, como se o mesmo livro contivesse dois. Contudo, no seu conjunto a obra busca uma unidade. Do ponto de vista temático, há uma multiplicidade de questões que abordam conteúdos filosóficos, sociais, existenciais e estéticos — fundamentalmente humanos, demasiado humanos.
Sabedoria e silêncio.
A leitura da primeira parte começa pela busca de um sujeito lírico que parece se esconder de sua individualidade através de uma voz coletiva. Esta, dirigindo-se a um interlocutor, paira, contém-se concisa, quebra a sintaxe e, conseqüentemente, priva-se por vezes da própria comunicação do que pretende dizer. Trata-se de uma dicção fragmentada pelos silêncios, não meras pausas, mas que funcionam como elementos estruturais dos textos. O primeiro desafio para ser encarado é a página em branco e, sobre ela, dar nome ao que vem desse vazio existencial ou natural que, filosoficamente, manifesta-se nessa voz, como que ausente de identidade pessoal. No poema 15: “como se tocasse/ o silêncio// a sintonia dos olhos/ não cabe na boca”; ou no 12: “(…) será também no vazio/ o gozo/ das coisas”.
É no vazio das páginas que o gozo da poesia se realiza. As palavras brincam, buscam-se e perdem-se na apologia do aquiagora, reincidente em muitos momentos, por um sujeito que se ausenta, exime-se, “e silencia/ dentadura na pele/ do infinito”. Afinal, “o mapa do tesouso/ silencia”. O que podemos cogitar é que esse sujeito lírico que tece sabedorias a um interlocutor desdobra-se nesse outro a quem se dirige. Antes do sábio que recomenda, é o humano que precisa do outro para se conter e seguir o caminho incerto desse aqui e agora do nosso tempo, consciente de sua condição.
que nada! sabe
Esta consciência, apesar de remeter à falsa modéstia colocada na boca de Sócrates — “Só sei que nada sei” —, representa uma convicção quanto ao tema: “sabedoria/ a avó analfabeta// o resto/ erudição e velhice”.
No único texto de “tudo muito sempre” em que o sujeito expressa-se em primeira pessoa, a questão também é colocada: “não sei/ não quero saber/ e vou aprendendo/ a não ter raiva/ de quem pensa / que sabe”.
Rede textual
Alexandre Faria não é estreante na produção poética, pelo contrário, atua regularmente em sites, saraus, oficinas de poesia, ensaios literários e magistério. O poema a seguir reporta-se a um outro livro do autor, Lágrima palhaça, que versa sobre o circo da vida, suas quedas e glórias: “palhaço chora// equilibrista/ trapezista/ malabares/ caem// leão devora/ domador// nesse circo// há glória/ também”.
Enquanto a primeira parte de Venta não prima pela concisão, a segunda é menos econômica, dando voz à fluência narrativa de um sujeito presente que se manifesta em primeira pessoa e ensaia até uma referência autobiográfica: “1970 (quando nasci) me implantaram o programa/ desde então frutifica cultivar a fé nos dados/ (…)/ mas defeito de fábrica humana falha/ durou menos que minha vida aquele chip”.
O tempo parece restringir-se ao agora, o que significa que o passado ficou para trás, são poucas reminiscências. O espaço é aqui, folha branca tentando dizer o indizível. Um agora contemporâneo imediato que se contrapõe ao tempo mítico e transcendental preservado e reincidente no tempo presente: o eterno retorno do mesmo, privilegiado no subtítulo dessa primeira parte: “tudo muito sempre”.
se eterno nunca se eterno onde?
só o que é com aquiagora
Alguns poemas, se lidos separadamente, parecem herméticos demais, a começar pelo primeiro: “o que é com/ só/ aqui e agora// goza um enquanto// se insondável// nem sonhes”.
Mas se compreendidos como fios de uma mesma rede textual, incorporados aos outros, passam a somar a multiplicidade de sentidos que se entrecruzam neste tecido-texto em permanente tensão. Esta se estabelece em vários níveis, a começar pelo confronto filosófico ou cultural de pontos de vista orientais e ocidentais. “pois no princípio/ o silêncio/ demiurgo.” Mas no princípio não seria o verbo divino? Não necessariamente: “o verbo/ comprava barulho// silêncio a barganha/ da criação”.
Conflitam aí a precariedade do verbo e a teimosia poética compulsiva que atravessa o Lutador, lembrando Drummond: “lutar com palavras/ é a luta mais vã./ Entanto lutamos…”. A luta acontece também entre o erotismo e a necessidade de contensão dos impulsos, entre Dionísio e um Apolo predominante.
paixões são para errar a mão salgardem sempre(…)
Apesar de sugerir “(…) rasga a receita/ da paixão medida/ não há quem avise”, Apolo predomina com a recomendação de cautela: “limites: avança/ até serem teus/ então recolhe”.
Enquanto no taoísmo chinês tudo vem do vazio e o recolhimento é tranqüilo e natural, para o Apolo pagão e Ocidental a origem era o Caos e “a vida é luta renhida/ viver é lutar”. Segundo Nietzsche, o apolinismo grego teve de brotar de um fundo dionisíaco: “O grego dionisíaco tinha necessidade de se tornar apolíneo: isso significa quebrar sua vontade de descomunal, múltiplo, incerto, assustador, em sua vontade de medida, de simplicidade, de ordenação à regra e ao conceito”.
mas venta não ê meu povo guenta aí —(…)inventa não meu que o povo inda há de ververedas no garimpo da poesia nas favelas(…)
É só desse fundo dionísiaco que pode brotar a poesia, mesmo que a racionalidade filosófica o tente conter. Na vida e na arte, neste aqui e agora, uma lágrima palhaça cai no picadeiro do poeta, homem múltiplo e incerto que, apesar do “trágico desconcerto” de um “chip que deu pau”, ainda ama, ainda sonha.
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