segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Entrevista com Cândido Rolim

O poeta Cândio Rolim acaba de lançar Sutur pela Textoterritório.

Confira nessa entrevista suas reflexões.



Em seus livros, uma das medidas do poético se mostra na participação efetiva sobre as questões contemporâneas. Para você, sob qual condição a poesia deve se aproximar dos fatos diversos?

A princípio não me agrada muito a poesia tipo reativa, que funciona de forma automática como uma caixa de ressonância naturalística sobre os fatos.  Entendo que o movimento dá-se ao contrário, ou seja, os fatos que nos impactam se aproximam, quando se aproximam, das operações da linguagem, seja como filtros “naturais”, estabelecendo limites e tensões à expressão, seja como fornecedores de insumos de toda sorte à escrita. Isso me permite inferir, por exemplo, que o cultismo tacanho do poeta da arte não degenerada - que acha que não foi golpe, que feminismo e movimento negro são micropolíticas -  signifique um auto convite às vigílias cívicas do general mourão.





Sua poesia é feita a partir de síncopes e cortes mais do que do ritmo da tradição. Em que sentido abandonar o ritmo da tradição pressupõe uma atitude poética da autenticidade da poesia brasileira a partir de 22? Como, a partir da questão posta, você lê a poesia contemporânea?

A fluência do modernismo clássico sobre as poéticas contemporâneas, para o bem ou para o mal, é ainda profundamente sensível, aqui acolá. Difícil encontrar um poeta da minha geração que não tenha se iniciado reproduzindo os pasmos de irreverência ou até mesmo os tiques formais e sonoros próprios do alto modernismo, prática que hoje mais indica imperícia que ousadia.
Considerando que a literatura, a meu sentir, constitui um autêntico páramo de espelhos, a autenticidade de cada poética talvez se resolva a partir de uma decisão muito íntima do sujeito em ser fiel o quanto possível a uma forma muito particular de dizer as coisas, de acercar-se às suas próprias realidades. Sob esse ângulo, eu vejo a poesia contemporânea com algum entusiasmo pois, em que pese o tom por demais afirmativo de um público que dispõe de invejável acesso à informação estética, parece haver mais preocupação em dar vez às novas e diversas sensibilidades sem necessariamente estabelecer marcos de transgressão ou negação aos modelos tradicionais. Felizmente parecem tratar a ruptura e a superação como questão secundária. E isso não é ruim.



Em Sutur, a dicção dos poemas é de um saboroso acercar-se da língua cotidiana. Parece-me que há um deslizar constante entre o tempo do poema e o espaço urbano de constituição do verso. O deslizamento entre os dois polos demarcados como tempo e espaço dá lugar a um terceiro tempo e espaço que se cumpre na poesia. A poesia de Sutur cria na relação entre tempo e espaço um lugar de pertencimento que não havia antes do poema. A síntese de sua poesia é uma busca constante do novo? Qual a responsabilidade de se escrever nos dias de hoje, em que a repetição do mesmo se torna a tônica constante das metáforas?

As experiências estéticas que considero de fato impactantes, em princípio, não parecem ter revelado claramente sua proposta de ruptura com modelos vigentes senão pela radicalidade de seus próprios elementos constitutivos.  Sob esse aspecto, as poéticas que nos parecem “novas” às vezes apenas nos recordam de que o texto poético é lugar de respiração, arejamento, eu diria, autenticidade não no sentido de se escrever o que se quer, mas o que se pode. Dia desses, eu estava pensando sobre essa prática metafórica de que parece tratar sua pergunta. Após o empachamento metalinguístico meio que surgiu na área certa prodigalidade metafórica atuando nos textos mais como índices do “poético” do que elemento de ligação entre o que se vive e o que se propõe a dizer. Pessoalmente prefiro construções sem conectivos, espécie de ligação entre a imagem e o nome, sem intermediações de terceiros, tipo “sorriso de quase nuvem”, com todo o respeito ao Caetano Veloso. Entendo o poema como uma construção o mais próxima possível do concreto, do real, em que pese ser feita com palavras, síncopes, sugestões, analogias, etc... 



A poesia e a música popular possuem, em sua poesia, uma relação íntima? Como você vê essa relação na poesia contemporânea?

Muito. Michel de Certeau percebeu bem a necessidade de se abordar a cultura no plural, desierarquizando as práticas, algo que eu entendo necessário também se aplicar à poesia. Seja tomada como um grande hipertexto sem começo nem fim nem pontos de inflexão facilmente perceptível, as escritas poéticas não conseguem se desvincular de um falar cotidiano, de todo um repositório de imagens subministrado pelo comércio diário da língua que, embora se incline à redundância, oferece surpreendentes desafios e soluções plásticas, às vezes renovando-a através de curiosas deformações.
Meu primeiro contato com a escrita foi com poetas populares. Os trabalhadores no interior onde eu morava, em grande parte, faziam versos, meu avô quase diariamente me chamava para ler folhetos e livros de poetas populares para ele. Meu primeiro livro, editado pela Edições Dubolso, em 1988, tem uma epígrafe de Leandro Gomes de Barros.
Difícil avaliar concretamente a relação íntima entre a música popular e a poesia contemporânea, sem entrar naquela grisalha questão do embate letra versus música. Outros já o fizeram com mais acuidade. Mas aquela ideia plural que tenho da poesia me permite dizer que, descontado o modelo canônico que orienta a quase totalidade das manifestações musicais (rima, refrão, escala...), a música popular tem nos presenteado também com bons textos (vejo grandes poetas no Rap, no hip hop, por exemplo).



Seus livros são escritos a partir de um projeto pré-determinado ou os poemas vão sendo construídos sem um prévio planejamento? 

Já foram. O Pedra Habitada (Ed. AGE, Porto Alegre, 2002), por exemplo, era um projeto de enxugamento, uma visada o mais objetiva possível sobre coisas que eu via e pretendia descrever, um abandono de toda carga lírica que até então eu vinha exercitando. Curiosamente essa tesão no critério pedia um rigor que hoje, francamente, não estou mais disposto a empregar, sob pena de não ser sincero com o que quero comunicar.
Um texto poético ao longo do tempo, não parece ter deixado de ser um objeto estético, concreto, construído por meio de artifícios, algumas convenções, tensões semânticas, etc. Todavia, hoje, entendo dispensável elevar a carga de convenção ao grau máximo e privilegiar tanto o discurso sobre “a palavra” em detrimento de alguma ideia concreta do vivido que eu tome como relevante. Assim, a escolha do que pode valer algum dia para um volume de poemas, seguramente vai se dar a posteriori, após muita cisma, observação e desistência.



Sua poesia se relaciona com maior intensidade com qual outra arte?

Seguramente com a fotografia. Sem pretender filosofar sobre o tema, mas olhando bem, a fotografia não fixa tanto algo que está ali sob a objetiva: um enigmático movimento ausente parece ditar e coordenar o rumor invisível de suas camadas de significação que adquire à medida que o olhar se historiciza. A mobilidade exuberante do cinema, por exemplo, parece narrar quase tudo, enquanto na fotografia o momento se apaga em proveito de uma propagação sorrateira. Eu posso não mais me reconhecer na foto, mas aquela mancha continua a falar a partir de seus traços. Texto e fotografia, visada em retrospectiva: no texto poético geralmente eu enxergo também o que não está mais ali (ou o que nunca esteve e me foi apenas sugerido), ou estando não se oferece com tanta nitidez.


Um comentário:

Anônimo disse...

excelente, perguntas e respostas!!!!

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