1 — Amigos, dizia eu ontem que há um abismo fatal entre o grande povo e o subdesenvolvido. E expliquei: — o grande povo é cínico, ao passo que o outro ainda se ruboriza. É a verdade. Um pulha como Ricardo III seria impraticável no Brasil. Mas um império como o inglês, e uma cultura como a de lá, justifica esse e outros piores. E nenhum estadista brasileiro — se tivéssemos estadistas — faria uma indignidade como a de Bismarck. Para deflagrar uma guerra, ele falsificou um telegrama. Não tremeu, não ficou escarlate.
2 — Um descaro assim antológico é próprio dos povos superiores. Todavia, ressalvei umas poucas exceções. É que, apesar do nosso subdesenvolvimento, temos pessoas e instituições lívidas, quero dizer, pessoas e instituições que não enrubescem , nem a tiro. Por exemplo: — a portaria que proíbe a venda do meu romance O casamento em todo território nacional.
3 — Imaginem que eu estava ontem em casa, quando bate o telefone. Era um repórter berrando: — “Teu livro foi cassado! Teu livro foi cassado!”. Como no soneto bilaquiano, eu fiquei pálido de espanto. O outro foi despejando mais informações: — “Portaria do Ministro da Justiça, proibindo a venda de O casamento em todo o Brasil!”. Por um momento, eu não soube o que pensar, nem soube o que dizer.
4 — 0 espantoso é que a notícia tinha algo de antigo, de retardatário, de espectral. Ódio a livros, perseguição de livros, sacrifício de livros, queima de livros — são ritos do defunto passado nazista. Naquela horrenda Alemanha, tudo isso era possível. Mas no Brasil, não e nunca. Ou, então, o Brasil está muito degradado, e repito: — o Brasil está apodrecendo à nossa vista, no meio da rua.
5 — Desde a Primeira Missa, desde Pero Vaz Caminha, pela primeira vez se odeia um livro e se quer a destruição física desse livro. Seus exemplares são cassados. É um crime ser livro. E esse ódio está confesso e gritado no texto da portaria. Lá se fala em "torpeza de linguagem". Não, não. Torpeza de forma, de fundo é a própria portaria. e quem a redigiu não se ruborizou?
6 — 0 texto do Ministério é, acima de tudo, burríssimo. Diz que o livro é contra a instituição do casamento. É falso. Podia sê-lo, e daí? Qualquer um pode discutir o matrimônio, o celibato, o adultério, a castidade e a viuvez. Acontece, porém, que o meu romance é anterior ao casamento. A mocinha se casa no último capítulo. E se casa de véu, grinalda, no civil e religioso. O casamento termina com os noivos na sacristia recebendo os cumprimentos. Sim antes dos salgadinhos e do guaraná.
7 — Vejam bem: — eu me dou o direito de ser contra quaisquer usos, costumes, instituições, idéias, cultos. Penso como quero e não admito, nem aceito, que me ponham limites nos meus pontos de vista. Mas insisto: não há, nas minhas trezentas páginas, uma única e vaga objeção ao matrimônio. Um dos seus personagens chega a dizer, de fronte erguida: — “Um casamento não se adia”. Nem se adia, vejam bem, nem se adia.
8 — Portanto, eu tenho todo o direito de achar, com toda a isenção e com toda a objetividade, que a medida contra o meu livro é, além do mais, analfabética. Alguém leu O casamento e não percebeu a evidência ululante. Dirá o leitor que há palavrões no meu livro. Mas serei o primeiro autor a usar palavrões? Antes de mim, Shakespeare já os usava com a maior abundância e desfaçatez. Por outro lado, temos aí Henry Miller. Seus livros são intocáveis, e por que intocáveis? Eis a razão: — a pornografia com sotaque pode entrar nas casas de família. Mas eu não condeno o palavrão, e por que o condenaria? Invoco o testemunho do próprio Ministro que me acusa e me ofende. Duvido muito que, ao ler esta crônica, S. Exa. não a condene com três ou quatro expressões, dessas que fizeram a glória de Bocage. Não o dos sonetos, mas o das anedotas.
9 — Amigos, sou pior do que são Tomé. Nem vendo acredito. Diante de mim está o fato. Posso apalpá-lo, posso farejá-lo. E não acredito, ainda assim. Porque se acreditasse, a partir deste momento, eu teria vergonha de ser brasileiro e direi mais: — deixaria de ser brasileiro.
Publicada em O Globo, em 14/10/1966
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