Há, por trás da origem da TextoTerritorio, não como causa determinante, mas como circunstância inalienável do fato, a demissão de um professor. Isso foi em 2008, cinco anos antes da impressão do Rapace, nosso primeiro título. Lá, então, fatos como aquele já não seriam novidade, como não o foram no início do século 20, haja vista o destino do grande professor Seu Carvalho, das Memórias sentimentais de João Miramar.
O episódio de 2008 é antológico. Para quem não se lembra, deixo algumas referências aqui. Os leitores podem, por sua vez, usar à vontade o espaço dos comentários para ampliação dessa antologia. Haverá, em todos os casos que forem lembrados, além da febeapística estupidez dos pretensiosos desilustrados, a evidência de uma crise na educação brasileira perpetrada pela preponderância da moral sobre ética. Naquela ocasião, quando urdia-se a TextoTerritorio, já era perceptível o avanço do conservadorismo reacionário. Dez anos depois, deu no que deu.
Recentemente, Caio Fernando Abreu foi o pivô de mais uma demissão, a última de que tive notícia. A história é sempre a mesma. Mães zelosas e pais corujas pressionam, na pretensão de seus cuidados hipócritas, diretores e coordenadores borra-botas, destacando de marca-texto amarelo, trechos amedrontadores de um conto, como este:
Na minha frente, ficamos nos olhando. Eu também dançava agora, acompanhando o movimento dele. Assim: quadris, coxas, pés, onda que desce, olhar para baixo, voltando pela cintura até os ombros, onda que sobe, então sacudir os cabelos molhados, levantar a cabeça e encarar sorrindo. Ele encostou o peito suado no meu. Tínhamos pêlos, os dois. Os pêlos molhados se misturavam. Ele estendeu a mão aberta, passou no meu rosto, falou qualquer coisa. O quê, perguntei. Você é gostoso, ele disse. E não parecia bicha nem nada: apenas um corpo que por acaso era de homem gostando de outro corpo, o meu, que por acaso era de homem também. Eu estendi a mão aberta, passei no rosto dele, falei qualquer coisa. O quê, perguntou. Você é gostoso, eu disse. Eu era apenas um corpo que por acaso era de homem gostando de outro corpo, o dele, que por acaso era de homem também.
É um trecho do conto "Terça-feira gorda", relatando um encontro amoroso entre dois homens num dia de carnaval. Por sinal, a mesma festa do calendário cristão em que os meninos bem criados vestem seus vestidinhos (azuis, é claro) e seus peitinhos de limões, para sair aos blocos. Realmente é um absurdo. Uma vergonha. Uma catástrofe para a família brasileira. Inda mais esse conto sendo distribuído nas aulas de um colégio católico. Que horror! Chamem o papa!
Que cretinice! Me lembrou Nelson Rodrigues escrevendo sobre o subdesenvolvimento brasileiro depois da censura de seu romance O casamento.
A Lição de Anatomia do Dr. Tulp, Rembrandt |
Mas vieram vindo, então, e eram muitos. Foge, gritei, estendendo o braço. Minha mão agarrou um espaço vazio. O pontapé nas costas fez com que me levantasse. Ele ficou no chão. Estavam todos em volta. Ai-ai, gritavam, olha as loucas. Olhando para baixo, vi os olhos dele muito abertos e sem nenhuma culpa entre as outras caras dos homens. A boca molhada afundando no meio duma massa escura, o brilho de um dente caído na areia. Quis tomá-lo pela mão, protegê-lo com meu corpo, mas sem querer estava sozinho e nu correndo pela areia molhada, os outros todos em volta, muito próximos.
Os que lincham gays podem não ser os mesmos que cortam a cabeça de professores. Mas alguma coisa eles têm em comum.
(Alexandre Faria)
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