terça-feira, 23 de abril de 2019

A propósito do racismo na literatura

As facções estão aí. Basta pintar a grana dos banqueiros que qualquer curadoria aciona uma ADA da vida. Amigos brancos e neobilacs prá lá. Amigos pretos e periféricos pra cá. Perde sempre a pesquisa (será possível?) sobre a poesia brasileira contemporânea. Perde mais ainda a leitura. Perde tudo a crítica!
Em 2013, Alexandre Faria e Oswaldo Martins organizamos o livro Outra - poesia reunida no sarau Manguinhos. No texto de apresentação do livro demarcávamos esse campo minado onde até hoje tem gente perdendo o pé. Vale a pena republicar aqui.




Muitas já foram as coletâneas organizadas a partir da produção poética e literária de espaços pobres, populares, ou periféricos na última década – não por acaso, a mesma década em que, desde a abertura política e a volta da liberdade de voto e de expressão no país, conseguimos levar mais longe a experiência da democracia e da cidadania. A consciência dos direitos civis e da participação popular na construção da esfera pública atingiu territórios impensáveis, antes invisibilizados, no mapa da cidadania brasileira forjado pela ditadura militar. Não se tratava de uma invisibilidade territorial, mas apenas no mapa da cidadania, equivocadamente compreendida pelo senso comum como “exclusão social”. Era, sim, o apagamento de uma parcela dos cidadãos – os pobres, os subempregados, os de empregabilidade suspeita ou alternativa –, de todos os brasileiros que se sujeitam ao salário mínimo e à venda barata de seu tempo e de seu corpo através do trabalho (e não se põe em dúvida a dignidade desse ato). Em outras palavras, o apagamento de pessoas perfeitamente incluídas no mecanismo de exploração do trabalho. O território pobre, popular ou periférico, nunca foi apagado, pelo contrário, seus limites sempre foram demarcados pelas fronteiras do preconceito (chegaram a ser indicados pelas placas de alerta das sucessivas prefeituras preocupadas em proteger a chamada gente de bem[1]), mas os cidadãos que ali habitam foram tornados invisíveis.
Pensemos a ideia de marginal ou de marginalidade como uma das principais armas para a construção dessa fronteira. É esse, desde que o samba é samba, um dos mecanismos ideológicos através do qual se produz a segregação do território e o apagamento de seus habitantes. Interessa à ideologia que a marca da marginalidade seja mesmo ratificada pela da criminalidade, instituída por um dos mercados que mais movimenta capital no mundo – o das drogas. Dessa forma, a interface que o Estado estabelece com o território dos pobres se dá quase que absolutamente pelo uso da força policial; e apenas para cumprir o mínimo do previsto na Constituição, mobiliza aparelhos de educação, cultura, saúde e segurança – pilares da esfera pública de qualquer sociedade. Não confundir força policial com segurança pública.
Qualquer projeto de democratização e de ampliação da cidadania no Brasil encontra, além da tarefa de domar e reformar as forças armadas (aqui com iniciais minúsculas, mas herdeiras diretas dos métodos de repressão dos anos de chumbo), a decepção de encontrar precários aparelhos de cultura, educação, saúde e segurança. Essa transformação é lenta e gradual; depende de pequenas ações públicas (não necessariamente do Estado), mas constantes; e, mesmo assim, está sujeita a retrocessos promovidos por escandalosas e retrógradas forças políticas e econômicas, que não largam o osso do velho Brasil. Por isso, é preciso saber relativizar muito bem a afirmação acima de que na última década conseguimos levar mais longe a experiência da democracia e da cidadania. Não há aqui nenhuma euforia. Esse mais longe é muito pouco e ainda corre o risco de retroceder. A maior e a melhor contraforça que pode produzir resistência e avanço da democracia no Brasil é a da própria sociedade civil organizada. De preferência em ações populares e comunitárias que sejam capazes de, diante de projetos do poder público ou das empresas do terceiro setor, pôr, como se diz, um olho no padre e outro na missa; ou seja, transformar, entre a parabélum e o passarinho, o ressentimento em revolta.
No campo literário, essas ações vêm tornando obrigatório repensar o próprio lugar de representatividade/representação da literatura na sociedade brasileira. Num Estado de perigosa vocação escravocrata, que investiu pesado no analfabetismo de sua população, é evidente que a arte literária, herdeira da tradição letrada (apesar de ter nascido na voz dos poetas, queremos crer, antes mesmo da invenção da escrita), tenha ficado por muito tempo na mão de poucos. Progredir, progredimos um tiquinho, que progresso também é fatalidade. E diante dessa inevitabilidade dos progressos mobrais, transformamos exceções como Machado de Assis, Lima Barreto ou Carolina de Jesus numa nova regra. Nosso patrimônio literário, durante muito tempo, ficou restrito às mãos de intelectuais e eruditos, alguns mais outros menos comprometidos com a causa popular, quer dizer, a causa dos ex(?)-escravos. Hoje, em movimentos populares e saraus que se multiplicam por todo o país, a literatura se torna palco de vozes e de escritas diversas e divergentes, de uma gente linda e inteligente, que, com biscoitos finos ou bolinho de chuva, faz literatura absolutamente livre do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.
Nesse contexto, a poesia reunida no sarau de Manguinhos, que este livro apresenta, é mais uma das coletâneas organizadas a partir da produção poética e literária de espaços pobres, populares ou periféricos, mas é outra, diversa, diferente, seguinte e ulterior.
O Sarau Poético de Manguinhos teve sua primeira edição em 15 de dezembro de 2001. Foi organizado por professores e alunos do Pré-Vestibular Comunitário de Manguinhos (PVCM), um movimento de educação popular, laico e apartidário, que atuou no campo da educação através da capacitação para o vestibular de estudantes economicamente desfavorecidos de Manguinhos e de outros bairros do entorno. O PVCM funcionou durante mais de dez anos através da autossustentação, com divisão das despesas pelos alunos e responsáveis. Os professores e coordenadores sempre foram voluntários e atuaram dispensando qualquer tipo de remuneração pelo trabalho realizado. O primeiro sarau poético foi proposto no âmbito das aulas de literatura, mas rapidamente o oiseau lyre da poesia derrubou os muros da sala de aula e espalhou ramas. Desde então, Manguinhos passou a reunir, nos dias de Sarau, poetas de diversos bairros e favelas do Rio. Zona Sul, Subúrbio e Baixada se concentravam naqueles encontros poéticos. Em 2010, o Sarau deixou a sede do PVCM (cedida pela Igreja Santa Bernadete) e mudou-se para o hall do cineteatro da Biblioteca Parque de Manguinhos. Ali passou a manter frequência mensal e o mesmo germe aglutinador da diferença, da outridade.
É assim que Outra – a poesia reunida no Sarau de Manguinhos procura dar conta da diversidade e da diferença de espaços socioculturais através de dicções poéticas que poucas reuniões literárias são capazes de aglutinar. Entre o excesso do sentimento e a contenção do verso, entre a força do corpo e da oralidade na performance e a inocência do hermetismo na escrita, entre a expressão das experiências vividas e a leitura crítica do mundo, os poetas e poemas aqui reunidos se intercomunicam através de vasos insuspeitos e compõem um panorama significativo da poesia brasileira contemporânea. Não se entenda aqui, por panorama, a coleção variegada de distintos espécimes de uma classe; a poesia aqui reunida expõe mesmo o próprio estatuto do poético, percebido e constituído em esferas distintas da sociedade, que tem em comum o fato de estarem mais livres da perspectiva normativa e acadêmica sobre o que é poesia.
Na testa laureada de nossos pobres poetas – pelo menos desde certo modernismo – o de Oswald, Bandeira e Drummond –, sempre se leu a enorme disfasia entre a letra pobremente empolada dos senhores da terra e a imediata necessidade de se pensar o país. A ninguém a inocente infância de Casimiro de Abreu, a ninguém a poética pseudolibertária de Castro Alves, a ninguém as estrelas de Bilac ou dos neobilacs de agora pode parecer sequer séria, quando grande parte da população, de ontem e de hoje, viveu e vive desde sempre a triste sina errática de homens fortes e nem sempre brutos, pessoas que formam o contingente profundo das necessidades desassistidas de que nos falou Gonzaga, de que nos falou Graciliano, de que nos falam os poetas que respondem através desta coletânea.
Como toda coletânea, Outra – a poesia reunida no Sarau de Manguinhos pressupõe uma diversidade de vozes; são distintos e irredutíveis a fórmulas os poetas que participam deste livro. Cada um responde por uma tradição que a formação possível lhes permitiu, mas nesta resposta surgem, demarcadas pelo lugar de onde falam e que os coloca dentro e fora desta mesma tradição, vozes dissonantes e necessárias dentro do panorama atual da poesia brasileira, que muitas vezes se justifica pela existência em si do que é necessário. E necessário, hoje, no panorama da poesia brasileira, são as vozes que desdizem o mesmo, que desdizem a sempre torta boca dos senhores de escravos e de leitores. Se os poetas nomeados, ou de grande nomeada, aprenderam com o sensabor de uma poesia de penduricalhos amorosos; se responderam a uma tradição canhestra e intencionalmente excludente e, ainda assim, fizeram grande poesia; os nossos poetas, que recebem como influência ecos diversos, não só possuem o direito a ter as suas poesias divulgadas, mas também a reescrever a tradição e a contemporaneidade com significado mais amplo.
A grande dificuldade, que talvez se apresente ao leitor desacostumado a sair do próprio umbigo, está no caráter de diferença que os autores representam e que se instaura em suas próprias produções. De André Capilé, que abre o livro, com o desabusado dos grandes poetas, a José Pereira, que o fecha, com o ritmo mais tradicional dos versos, os dez poetas trazem algumas questões que são de enorme relevância para quem está acostumado a lidar com a poiesis, com o fazer. Da síncope improvisada de Dona Maria ao aparentemente prolixo de Monique Nix, da dicção irônica, sarcástica e cética de Elesbão Ribeiro ao fazer político de Adriana Kairos, da poesia plástica de Mozileide ao cancioneiro amoroso de Aline Leite, da perspicácia-minuto de Maura Santiago à profunda humanidade dos poemas de Cláudio Barreto, as questões se avolumam e adquirem peso.
Caso se tome, por exemplo, a poesia de Monique Nix por dentro, verifica-se que o discurso contra o fundamentalismo religioso, que domina – segundo uma análise tortuosa e viciada – toda uma camada da população, se torna pequeno ante a capacidade de articulação a que a autora se entrega em “Suborno Divino”, cujos versos

DEUS vai para o INFERNO
E o DIABO assume o antigo cargo

são a síntese mesma da visão que se prende a um modo de perceber a vida que só o poeta, este, pode denunciar. A novidade se encontra não só na disposição dos versos, mas na autoridade com que Monique o percebe. A desconstrução religiosa que a autora produz encontra seu duplo na religiosidade expressa, por exemplo, em Capilé, no instigante poema “Exu”,

Fermenta. Melanja farinha otí dendê
— gargalha. Comporta o sorriso; não redunda
— metáfora mais. O caralho a foda e o barro
(Hermes, o do pinto menor, nem pra saída).

em que a gargalhada é a percepção de uma religiosidade que aos deuses e aos homens se dita e medita; como espelhos, deuses e homens discutem e disputam o dom da trepada, o dom do dom do pinto maior. A religiosidade aqui encontra o ponto de equilíbrio ancestral de toda medida. Tanto Monique como Capilé são doadores de novas vertentes, distantes e distintas, mas que em comum obrigam o bem-pensante a sair dos seus cômodos lugares.
Há ainda a poesia de Maura Santiago, cuja construção se faz a partir do imediato, mas de um imediato descontínuo e recortado – qual um filete de cena que escorre e deságua num mundo de surpresas inauditas – a tomar o leitor de assalto sem lhe devolver nada, senão apenas o instrumento com que pensar. O poema “Fraqueza Feminina” fala por si mesmo.

Fraqueza feminina
gozar no pau errado

Enfim, a pequena amostra selecionada permite que se perceba, em Outra – a poesia reunida no Sarau de Manguinhos, uma dicção variada nos métodos de composição e a possibilidade de se perceber – queira ou não o leitor – que a poesia que se constrói lentamente nos espaços pobres, populares ou periféricos do país se faz com dignidade e participação democrática e nada fica a dever aos poetastros – que Eça os abençoe – que vicejam nas lojas de departamento em que se transformaram as livrarias.
Se o leitor buscar apenas a confirmação autossatisfeita do que entende como poesia, desde logo se avisa: que procure outro espaço, outros ares, em busca do que acomode seu coração acostumado à mesmice diária dos salões de festa ou às areias das praias. Se, entretanto, sua curiosidade o levar a esmiuçar – sob a fragilidade de alguns poemas – o que eles dizem, criam e trazem como novidade; se se permitir não incorrer em preconceitos de classe e ouvido, deslocando-se de uma percepção viciada, a leitura destes autores – destes, e não de outros – pode fazer com que a dimensão do poético se modifique no que é essencial: a capacidade de fugir das torres dos edifícios, do dizer ultrarromântico que domina uma poesia do umbigo praticada com a maior desfaçatez pelos poetas escolares que se mimam em grupinhos e em revistas de letras e números. Por isso, OUTRA.

SAMPLEAMOS:
Allan da Rosa Boaventura Sousa Santos Carolina Barreto Eça de Queirós Erica Peçanha Ferréz Graciliano Ramos Jacques Prévert Janice Perlman Luiz Gonzaga Machado de Assis Manuel Bandeira Marcelino Freire Maria Rita Kehl Mário de Andrade Nelson Maka Oswald de Andrade Rogério Batalha Sergio Vaz

AGRADECEMOS ÀS PESSOAS:
Alexandre Pimentel André Gomes Anne Douglas Pêgo Elaine Magalhães Eliud Oliveira Ivete Milosky Luiz Claudio Barreto Maura Cristina Santiago Mozileide Nery Priscila Gomes Vanderléa Santiago Vera Saboya

Os editores
Alexandre Faria e Oswaldo Martins

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