Resenha de Lucio Autran sobre o livro de Mário Tavares
Recebo, e só depois percebi que seria com grande alegria, pois, confesso, iniciei sua leitura com desconfiança, o livro de Mário Tavares, “O Diário de um Psicopata” (Editora Texto Território – 2014). O motivo da alegria conto abaixo, mas o fato é que quando recebo o livro de um bom poeta que tem o azar de viver no Brasil contemporâneo, na cena cultural que nos assola, me invade um enorme desânimo.
Porque a poesia é tão desprezada? Logo ela, que Cabral chamou um dia “laboratório da língua”. E já nem digo pelo mercado, que disso, mercado, não tem passado (“ah, não vende...”), embora esteja convencido de que tendo as editoras, por previsão do Constituinte originário (não é novidade, a de 67 já o previa), imunidade tributária, outro deveria ser seu dever, frise-se, dever jurídico: o de proteger a cultura, fomentá-la, e não somente lucrar com ela, mas sobretudo atentar para sua função social, outro dever jurídico/constitucional, não tenho dúvidas que a parcela que deixaram de recolher para os cofres públicos deveria reverter para a Cultura. Mas disso já tratei no jornal “Falando de Literatura”, de Fernanda Sampaio, além disso, é uma esperança, esse mercado já se aproxima da xepa, percebe-se pelo cheiro, e em breve pouco restará dessa carcaça, salvo para os urubus de costume.
Falo também da cena cultural, das resenhas nas folhas, pois de crítica não se trata, sempre orbitando em torno das mesmas editoras e da mesma ação entre amigos. Mas deixa isso de lado, afinal, não vale à pena azedar a leitura do belo livro de Mário, passemos às alegrias de encontrar um poeta de alta voltagem.
Embora meu oposto, esteticamente falando, exatamente por isso sua poesia me fascinou. Mas o que me fez chegar mais perto, e mais fundo, imagino, foi pelo que venho pensando ser uma estética possível de nosso tempo: uma estética da crueldade - distante da ideia do Teatro da Crueldade, de Artaud, embora com aquele guarde algum parentesco - ou uma poética escatológica, que se distancia de uma escatologia poética, que é frescura.
Qualquer dia me aprofundo nisso, mas vi, em “Os Diários de um Psicopata, uma interessante forma de crueldade, e digo “uma”, pois são várias as formas que pode tomar uma poética da crueldade, até porque são várias as formas de ser-se cruel na poesia. Há a crueldade de ser o profeta da escatologia de nosso tempo, em ambos os sentidos do termo, o do nojo e o do perigoso namoro com o final dos tempos.
Há, não se pode negar, a crueldade de despir seu próprio desespero ante os olhos de espanto do leitor, e, pergunto, qual o sentimento possível, a poética possível de nosso tempo, senão o desespero? Desespero esse que pode, em seus limites, perder-se e amalgamar-se à sua pior forma: a vontade contra si mesmo, o suicídio.
Mário está longe disso, sua peçonha o salva, e exerce a sua com a precisão cirúrgica de uma navalha, embora, e aqui vale a mínima crítica, diminua levemente sua voltagem quando tenta ser sádico, o que é outra coisa, pois se a crueldade está internalizada em nós, o sadismo está no prazer mórbido do sofrimento alheio, a diferença é sutil. Mas são tão raros, raríssimos esses momentos, que não os notamos, de um modo geral sua lâmina é precisa, como, por exemplo, em “Maldição”: “Maldita seja a cama / Em que nos deitamos. / Ali não amamos, / Calculamos / A morte / De seres / Inocentes. // Se não me falha / A memória / Isso nos deu muito / Prazer.” Ou, em “Fidelidade”: “É mentira! / Garanto: / nunca / Matei ninguém. / Você será / A primeira”.
Mas sua poesia tem outra estranheza: sua brevidade, seu poder de síntese, que não se assemelha, felizmente, e já se pode começar a entender minha estranheza inicial, com a brevidade tão comum em nosso tempo, que tanta vez traduz mais a ausência de destreza no manejo da lâmina das palavras, ou pura e simplesmente falta de assunto... Sua lâmina é precisa no corte, curto embora, mas sua crueldade, percebe-se, é elaborada, fruto certamente de sua sólida formação intelectual, que guia seu fazer poético de forma espontânea, sem artificialismo, e talvez nem seu autor se dê conta exatamente da dimensão de como isso o auxilia. Felizmente, não há, em Mário, qualquer vestígio de afetado elogio ao analfabetismo mal disfarçado.
Enfim, sua poesia se aproxima de nós com vagar, como deve ser, vencendo as desconfianças que tenho do contemporâneo (mea culpa), do artificialismo gratuito, e assim, vagarosamente, vai penetrando sua lâmina fina em nossos olhos, até nos cegar, às gargalhadas...
Se Drummond, em “O Mito”, escandaliza-se com a necrofilia de “Fulana” (“já morto, me quererá? Esconjuro se é necrófila...”), Mário, ou melhor, o psicopata que (n)ele encarna, mas que com ele não se confunde, é, ele próprio, o necrófilo: “Necrofilia”: “Quero comê-la / Nua e crua. / Sem tempero, / Sem desejo. / Sem vida”, enunciando as distâncias do tempo e das poéticas.
Mário ri de nós e de si mesmo, sem piedade e sem autocomiseração, incabível em seus versos (“Sermão: Vinde a mim / Os infelizes. / Mas vinde logo / Pois estou / Com uma vontade enorme / De rir”).
E assim as falsas primeiras impressões dissiparam-se, todavia, entre todas as qualidades que enumerei, talvez a principal delas seja a de que Mário não tenta mostrar-se “erótico”, ou mesmo “pornográfico”, que tanta vez não passa de mero exercício de um anacrônico “épater la bourgeoise”, não, antes, sua poesia é obscena, não pela etimologia latina obscenus (ob caenum) mas, por outra, de sua também origem latina, de ob scenus, a que está fora da cena do palco, aquele que está “contra” essa mesma triste cena de nosso tempo.
Numa palavra, leitor, não perca seu tempo pegando o livro de Mário, “O Diário de um Psicopata” para degustá-lo, muito menos para devorá-lo, mas, necrófilos ambos, canibalize-o, num ritual de macabra crueldade.
(Lucio Autran)
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