sábado, 23 de novembro de 2019

"Versos à boca da noite", de Carlos Drummond de Andrade

Versos à boca da noite

Carlos Drummond de Andrade


No bate-bola com Marcelo Diniz, este foi escolhido como um poema imperdível.



Sinto que o tempo sobre mim abate
sua mão pesada. Rugas, dentes, calva.
Uma aceitação maior de tudo,
e o medo de novas descobertas.

Escreverei sonetos de madureza?
Darei aos outros a ilusão de calma?
Serei sempre louco? Sempre mentiroso?
Acreditarei em mitos? Zombarei do mundo?

Há muito suspeitei o velho em mim.
Ainda criança, já me atormentava.
Hoje estou só. Nenhum menino salta
de minha vida, para restaurá-la.

Mas se eu pudesse recomençar o dia!
Usar de novo minha adoração,
meu grito, minha fome. Vejo tudo
impossível e nítido, no espaço.

Lá onde não chegou minha ironia,
entre ídolos de rosto carregado,
ficaste, explicação de minha vida,
como os objetos perdidos na rua.

As experiências se multiplicaram:
viagens, furtos, altas solidões,
o desespero, agora cristal frio,
a melancolia, amada e repelida,

E tanta indecisão entre dois mares,
entre duas mulheres, duas roupas.
Toda essa mão para fazer um gesto
que de tão frágil nunca se modela,

E fica inerte, zona de desejo
selada por arbustos agressivos.
(Um homen se contempla sem amor,
se despe sem qualquer curiosidade.)

Mas vêm o tempo e a idéia de passado
visitar-te na curva de um jardim.
Vem a recordação, e te penetra
dentro de um cinema, subitamente.

E as memórias escorrem do pescoço,
do paletó, da guerra, do arco-íris;
enroscam-se no sonho e te perseguem,
à busca de pupíla que as reflita.

E depois das memórias vem o tempo
trazer novo sortimento de memórias,
até que, fatigado, te recuses
e não saibas se a vida é ou foi.

Esta casa, que miras de passagem,
estará no Acre? na Argentina? Em ti?
Que palavra escutaste, e onde, quando?
Seria indiferente ou solidária?

Um pedaço di ti rompe a neblina,
voa talvez para a Bahia e deixa
outros pedaços, dissolvidos no atlas,
em País-do-Riso e em tua ama preta.

Que confusão de coisas ao crepúscolo!
Que riqueza! Sem préstimo, é verdade.
Bom seria captá-las e compô-las
num todo sábio, posto que sensível:

uma ordem, uma luz, uma alegria
baixando sobre o peito despojado.
E já não era o furor dos vinte anos
nem a renúncia às coisas que elegeu,

Mas a penetração no lenho dócil,
um mergulho em piscína, sem esforço,
um achado sem dor, uma fusão,
tal uma inteligência do universo

comprada em sal, em rugas e cabelo.

Nenhum comentário:

Convocatória

Envie seu texto para Blog da TextoTerritório - "Erotismo e saúde"

  Milo Manara - Enfermeira Envie sua participação sobre o tema "Erotismo e saúde" para o Blog da TextoTerritório. Milo Manara - Nã...