O Flexível e o Fascista
Carlos Augusto Corrêa
Augusto Meyer |
As aulas do Professor Augusto Meyer sobre teoria literária na antiga Faculdade Nacional de Filosofia, mais tarde UFRJ, eram, além da transmissão de conteúdo, grandes lições de vida.
Numa dessas aulas, ouvida pelo moço aqui de ainda dezoito anos, mestre Meyer, ao abordar a poesia de Cruz e Sousa, chegou em um momento e confessou: "o negro é um povo admirável, ele tem rara capacidade de fugir à dor por meio da alegria". E continuou a tocar no assunto, só que entrando na escravidão, e a aula ganhou uma dimensão considerável a meus olhos, sempre atentos ao problema social.
Saí dessa aula, mais uma palestra, com uma amiga e a caminho do Passeio Público. Manifestei a ela total simpatia pelas posições teóricas de Augusto Meyer. O nosso professor. Ela me perguntou o porquê: expliquei ser pela segurança e pela riqueza de detalhes com que abordava qualquer assunto. Meyer passeava sobre qualquer tema. E nesse ponto de nossa conversa acrescentei o principal: que as aulas dele me davam muita segurança. Por quê? Porque, além de saber, ele era um espírito democrático. Respeitava a opinião do outro; discordava, concordava com abundância de pormenores. Um flexível, enfim.
Bem diferente de mestre Augusto Meyer, era um professor titular de História de Roma. Um cidadão de nome Eremildo. Era incisivo, ácido com o estudante, de uma ironia que buscava humilhar todo aquele de ideologia diversa da sua: era de extrema-direita. Ele injetava o saber no aluno como se a sua opinião fosse a única. Uma vez, logo que o conheci, perguntei sobre Plekhanov, e com essa pergunta que lhe incomodou a goela caí em sua desgraça: esse Pinochetzinho passou a me ameaçar o ano inteiro com reprovação, com ironias e risadinhas sarcásticas a meu respeito, passou a se referir a torturas a presos políticos, mencionou numa aula como era a tortura do pau de arara, e sorria. Nossa turma recebeu a presença de dois homens corpulentos que se aproximaram de mim e durante a aula faziam perguntas insinuantes. Mas, apesar de meus dezoito anos, eu já era militante fora da Universidade e me fiz de ingênuo.
Esse era o Eremildo, um razoável Idi Amin. Se nossa turma ali fosse considerada desleal a seu saber maior, seríamos executados como os nove mil soldados de Amin em seu primeiro ano de governo. Só que nossa execução seria outra. Nós, seres fraquinhos no verdume da idade, não formávamos uma plateia aberta à troca de ideias. Never. Eu e todos nos sentíamos numa senzala sob a voz imperiosa desse Führerzinho. Ele aposentou-se e deixou à posteridade uma imagem zero.
Que diferença a dele para o grande Augusto Meyer! Professor, jornalista, folclorista, um intelectual de primeira água, sinônimo de flexibilidade, de identificação com o outro, de autocrítica. A mesma pergunta que fizera ao Eremildo, a fiz a Meyer. Ele discordava do filósofo, embora tenha destacado a sua importância teórica no movimento de 1917.
Já o Eremildo, esse foi exemplo de retrocesso e repressão. Ele talvez fosse relembrado agora pelos adeptos da Escola sem Partido. Gente, se esse cidadão fosse indicado pra integrar a hierarquia do Terceiro Reich, por seu jeito pequeno de ser e diante daqueles que deviam ser seus líderes espirituais, ele seria incluído imediatamente como um bom capacho de Goebbels.
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