Sexo e literatura
Quando nos vimos todos submetidos ao isolamento, à assepsia destes tempos, aos álcoois e sabonetes, de imediato passei a me perguntar qual seria o lugar para onde penderiam as necessidades de afirmar o sujo, o homem e suas nuances de sarjeta e sexo. Como se haveria esse grupo, cujo sentido foi sempre o de desrespeitar as ordens estabelecidas, a justeza dos comportamentos, de se comportar frente à demoníaca necessidade de sobrevivência, que inclui a proibição das portas da sujidade.
O Decamerão de Bocaccio talvez possa nos dar algumas pistas. Mesmo que seus personagens se isolem para resistir à peste, há neste isolar um sentido que escapa à tolerância e à aceitação do estado de coisas com que deveriam lidar. As narrativas encontradas no célebre livro postulam uma série de histórias que têm por fundo a sujidade, seja ela de cunho pecuniário, seja de cunho religioso, seja de cunho matrimonial e de cunho sexual.
A perspectiva, embora tenha a determinação moralista de sua época, com ela faz um contraponto ao desmascarar as diversas hipocrisias que dominam os ambientes sociais da sociedade medieval. Não me interessa aqui desenvolver essa tópica, mas achar uma deriva diferente. Ao falar de putarias, patifarias, ou outros conceitos de igual teor, Bocaccio permite que se veja um cenário em que a crise sanitária teima em esconder: a necessidade de salvar os impulsos eróticos. Por isso as trepadas, as astúcias, a boca suja e desdentada, o corpo a escorrer as doenças venéreas; enfim, a manutenção do impulso erótico a que aludimos.
Escrever, falar, contar histórias em que o cerne seja o impulso vital é necessário e ajuda a que enfrentemos esse período de absoluta depuração, esse período de ferozes e emblemáticas necessidades de limpeza. Devemos enfrentá-las com decisão ao mesmo tempo que devemos preservar nossas vidas.
Não se defende, é claro e óbvio, a irresponsabilidade bolsonarista, cujo sentido não é erótico, mas derivado da crença desmedida no genocídio, na limpeza étnica, de gênero e social. O que se defende é um exercício quase ilusório: confrontar as fronteiras do humano, no que possuem de mais íntimo, de mais normativo e contemporâneo.
Todos os instrumentos de comunicação virtual, desde as rádios, as televisões, até as redes sociais são autoritários e não permitem – principalmente nestes já quase seis meses de isolamento – nenhuma publicação que atente contra os maus costumes arraigados na conduta direcionada pela naturalização do “que nojo”, repetido até a exaustão pelos novos adultos e seus descentes adolescentes. Publicar as patifarias, fotos de nudez ou nudes, seguidas de palavras próprias para as ocasiões da afirmação sexual – na amplitude de sua diversidade – é fundamental para o funcionamento dos desejos, das inquietudes, do vitalismo.
Neste sentido, cremos que a literatura tenha função fundamental neste processo de questionamento e de produção de sentidos em que a ereção e os líquidos seminais – ajudados ou não pelo vasto repertório das vaselinas – permitam ao corpo resistir às barbaridades do cotidiano e à onda de depressão psíquica, que sem a sexualidade e suas viscosidades tendem a afirmação da morte.
Contra a morte, leiam Bocaccio, mas, e principalmente, escrevam como o escritor do medievo latino.
(oswaldo martins)
Quando nos vimos todos submetidos ao isolamento, à assepsia destes tempos, aos álcoois e sabonetes, de imediato passei a me perguntar qual seria o lugar para onde penderiam as necessidades de afirmar o sujo, o homem e suas nuances de sarjeta e sexo. Como se haveria esse grupo, cujo sentido foi sempre o de desrespeitar as ordens estabelecidas, a justeza dos comportamentos, de se comportar frente à demoníaca necessidade de sobrevivência, que inclui a proibição das portas da sujidade.
O Decamerão de Bocaccio talvez possa nos dar algumas pistas. Mesmo que seus personagens se isolem para resistir à peste, há neste isolar um sentido que escapa à tolerância e à aceitação do estado de coisas com que deveriam lidar. As narrativas encontradas no célebre livro postulam uma série de histórias que têm por fundo a sujidade, seja ela de cunho pecuniário, seja de cunho religioso, seja de cunho matrimonial e de cunho sexual.
A perspectiva, embora tenha a determinação moralista de sua época, com ela faz um contraponto ao desmascarar as diversas hipocrisias que dominam os ambientes sociais da sociedade medieval. Não me interessa aqui desenvolver essa tópica, mas achar uma deriva diferente. Ao falar de putarias, patifarias, ou outros conceitos de igual teor, Bocaccio permite que se veja um cenário em que a crise sanitária teima em esconder: a necessidade de salvar os impulsos eróticos. Por isso as trepadas, as astúcias, a boca suja e desdentada, o corpo a escorrer as doenças venéreas; enfim, a manutenção do impulso erótico a que aludimos.
Escrever, falar, contar histórias em que o cerne seja o impulso vital é necessário e ajuda a que enfrentemos esse período de absoluta depuração, esse período de ferozes e emblemáticas necessidades de limpeza. Devemos enfrentá-las com decisão ao mesmo tempo que devemos preservar nossas vidas.
Não se defende, é claro e óbvio, a irresponsabilidade bolsonarista, cujo sentido não é erótico, mas derivado da crença desmedida no genocídio, na limpeza étnica, de gênero e social. O que se defende é um exercício quase ilusório: confrontar as fronteiras do humano, no que possuem de mais íntimo, de mais normativo e contemporâneo.
Todos os instrumentos de comunicação virtual, desde as rádios, as televisões, até as redes sociais são autoritários e não permitem – principalmente nestes já quase seis meses de isolamento – nenhuma publicação que atente contra os maus costumes arraigados na conduta direcionada pela naturalização do “que nojo”, repetido até a exaustão pelos novos adultos e seus descentes adolescentes. Publicar as patifarias, fotos de nudez ou nudes, seguidas de palavras próprias para as ocasiões da afirmação sexual – na amplitude de sua diversidade – é fundamental para o funcionamento dos desejos, das inquietudes, do vitalismo.
Neste sentido, cremos que a literatura tenha função fundamental neste processo de questionamento e de produção de sentidos em que a ereção e os líquidos seminais – ajudados ou não pelo vasto repertório das vaselinas – permitam ao corpo resistir às barbaridades do cotidiano e à onda de depressão psíquica, que sem a sexualidade e suas viscosidades tendem a afirmação da morte.
Contra a morte, leiam Bocaccio, mas, e principalmente, escrevam como o escritor do medievo latino.
(oswaldo martins)
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