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Edward Hopper |
Para R., aonde quer que ele esteja
Me ensinou que o passado é o lugar mais distante na face desta terra num dia de semana qualquer. Era meio da tarde, três ou quatro horas, e tenho quase certeza de que era quarta-feira. Vai ver é por isso que quartas me parecem dias cheios de vida: porque costumávamos sentar sempre lá, no banco do meio na parte de trás do parque, o que fica bem em frente ao balanço que, na época, era vermelho e que quase chegava na escadaria da Igreja de São Sebastião, onde eu tinha entrado apenas uma vez nas bodas de prata da minha tia Lena, depois de dormir na casa dela e descobrir, como que num sopro de lucidez que só vem de vez em quando na vida, que meus pais não eram, afinal, imortais e que a mesma saudade que eu sentia deles aos seis anos por ter decidido passar a noite fora de casa eu ia sentir um dia para sempre, quando eles partissem. Talvez seja por isso que até hoje eu evito passar perto dessa igreja em específico – porque ela me lembra que somos passageiros. Mas com ele aquele lugar se encantava e, de repente, a morte parecia não existir. Foi ali que um dia eu senti vontade de comer coxinha na lanchonete do outro lado da rua e ele pediu para eu esperar, porque queria me pedir em namoro sem o bafo de maionese caseira que me dava sempre que eu comia salgadinho. Disse que sim, mas que queria comer também e logo porque estava com fome e assim nossa história se oficializou. Lembro dos ratos do tamanho de gatos que frequentavam os arbustos próximos, da moça da paçoca que veio da Bahia e que dizia que o amor era lindo, das tentativas de passar a mão no meu peito disfarçadamente, como quem esbarra sem querer. Até hoje quando alguém tenta essa manobra eu lembro disso e logo em sequência fico meio que broxada porque raspar a mão no peito sem querer é aceitável quando se tem a idade que nós tínhamos, mas não mais aos 30 anos de idade. Por coincidência foi ali também que terminamos. Era para ter terminado no buffet livre de café da tarde, mas como eu estava com vergonha de chorar lá, fomos dar uma volta a pé e acabamos parando no lugar de sempre. Por acaso escureceu e de repente eu notei que cinco meninos estavam cercando a gente e falei com ele, que me disse para parar de ser paranoica e medrosa. Eu disse então que era uma mulher livre e não mais sua namorada, por isso ia pegar minha bolsa e sair correndo. E fui. E ele veio atrás de mim e os meninos também e por um segundo esquecemos que estávamos terminando um relacionamento de quatro anos e foi sebo nas canelas até chegar no bar mais sujo da cidade, que vende pastel frito cheio de gordura em frente ao Cine Theatro Central. Foi assim que desfizemos o compromisso formal que cultivamos durante quase meia década e que percebemos, também, que não dava para simplesmente cortar os laços de amor com quem dividiu mais de 130 filmes conosco, contados ticket a ticket, nem tantas peças de teatro, música de ouvir de olhos fechados, moedinha para comprar cachorro quente na festa da igreja (de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro) e os brigadeiros das festas das sobrinhas. Mas eu já sabia disso. Desde o dia em que estávamos jogando Imagem e Ação na casa da Kamilinha e a palavra da rodada era Camada de Ozônio. Ficamos horas tentando fazer uma mímica e ninguém acertava, até que eu olhei para ele e articulei muda & discretamente ca-ma-da-de-o-zô-ni-o. Vi o desapontamento tomando conta das bochechas rosadas com covinhas fundas e me preparei para ser exposta diante de todos. Mas não. Continuou o jogo como se nada tivesse acontecido e depois me perguntou por que diabos eu tinha feito aquilo. Disse que não sabia, mas segurei sua mão e agradeci por não ter contado para ninguém. Naquele momento meu coração ficou quentinho e, talvez pela primeira vez na vida, a cumplicidade tomou forma de gente. Como você termina com seu cúmplice? Não termina. Mesmo que o tempo tenha levado a um eventual afastamento, mesmo que as conversas longas no meio das tardes em pleno dia útil não existissem mais, eu sabia que podia ligar sempre que precisasse roubar no jogo de tabuleiro. Em qualquer jogo de tabuleiro. Jogo de tabuleiro é, na verdade, uma metáfora para todas as coisas ilegais e repulsivas ou só bobas mesmo que eu poderia vir a fazer ou pensar e que eu sabia que ninguém entenderia. Mas ele sim. E foi com alegria que vi ele ganhar o além-mar no tão sonhado intercâmbio e realizar várias coisas que um dia pareciam muito distantes naquele banco cheio de história. E enquanto ele era feliz lá, eu era feliz aqui e, de verdade, ficava feliz com a felicidade dele e, se isso não é amor, então não sei o que é. Uma época nos encontrávamos muito por acaso no ônibus e era ali que eu sabia das novidades e atualizava as minhas também. Num desses encontros eu estava usando o brinco prateado que ele me deu há séculos atrás e que tinha sido escolhido pela irmã, que já não habitava mais esse mundo. Eu sou extremamente relapsa com joias, mas sempre tive um cuidado muito redobrado com essa. Eu me recordo exatamente do dia em que ela entrou na cozinha e passou a caixinha vinho escondida para a mão dele, do cheiro de batata frita e do riso de bebê, da alegria de casa cheia e de cachorro pulando. Uma vez fiz uma viagem com um namorado que veio depois. Deixei um dos brincos cair no chão e ficamos quase três horas vasculhando a grama para tentar encontrar. Quando achei, eu chorei – de alívio, alegria, amor. Lembro que o então atual me perguntou a razão de tanto cuidado com um brinco que nem era caro e eu disse que tinha coisas que o dinheiro não comprava e aquela era uma delas. Acho que não cheguei a contar isso para ele. Engraçado que eu sempre me orgulho de viver o que eu quero e falar tudo que acho que precisa ser dito, mas pensando agora, isso ficou faltando. A gente sempre acha que vai ter mais tempo. Esse ano era nosso aniversário de dez anos de término e a gente planejou tanto tomar um café. Achei que teríamos tempo para o café ou até mesmo uma cerveja. Quando a gente namorava eu não bebia e depois eu bebia, mas aí ele namorava outra pessoa e eu também e parecia estranho sair para tomar uma cerveja e deixamos para um dia-talvez-quem-sabe e, quando chegou o momento em que não seria mais estranho, era a pandemia e ela nunca mais acabou e, de repente, no meio disso tudo teve um câncer. Confiei na eternidade que a gente insiste em achar que tem e perdi a chance de algo que não volta mais. Nunca liguei muito para histórias de câncer: ele estava sempre tão longe de mim. Sei que vimos juntos o filme Antes de Partir, mas a coisa toda só se tornou real mesmo para mim quando, em outro dia de semana (dessa vez escuro e pesado, já sem a leveza daquelas quartas), fui numa palestra de Outubro Rosa que um amigo estava ministrando. Foi ali que descobri que o câncer nada mais é do que as células do nosso próprio corpo se multiplicando de uma forma não muito legal, só que sem ninguém saber muito bem como ou o porquê de isso acontecer. Senti um frio na espinha mas fingi que não era comigo. E fingi até ficar real demais e eu não poder mais ignorar o que estava acontecendo. E hoje faz uma semana que recebi a ligação me pedindo para ir ao hospital e eu ainda não consigo entender direito o que se passou. As coisas estão estranhas. O que eu vi foi o carinho de sempre, o sorriso de sempre, o amor de sempre, a mão pintuda de sempre, o entrelaçar dos dedos de sempre, os cílios gigantes de sempre. Nada mudou, mesma coisa, mas tudo tinha mudado por conta daquelas células que foram desencadeando um processo avassalador que acabou há dois dias. Acabou? No dia da tal palestra eu lembro que fiquei pensando ‘o que será que a gente está fazendo quando uma célula simplesmente faz isso? Se a gente pudesse saber, ver o momento, o que será que estava acontecendo exatamente nessa hora, nesse minuto, nesse segundo em que tudo aquilo começou a desabar?’. Me pergunto isso desde há algum tempo e não consigo imaginar onde é que eu estava vivendo minha vida despreocupadamente quando as células de uma das minhas pessoas preferidas no mundo todo resolveram pregar essa peça em nossas vidas e levar embora para sempre a doçura em forma de pessoa. E enquanto eu não chego a nenhuma conclusão, enquanto nada me ocorre, eu lembro de coisas que nem sabia que estavam guardadas em mim. Como o dia do abraço de dez minutos quando a chuva levou a decoração da minha festa embora; o choro abafado com a cabeça no peito quando perdi minha primeira disputa de personagem; da briga homérica que aconteceu quando eu disse que o quadro que ele pintou e pendurou na sala estava parecendo uma pintura rupestre; do cheiro do molho de tomate caseiro e do bife à parmegiana nos aniversários de namoro; do ‘ninguém é uma coisa só’ quando eu disse que não sabia se dava conta de ser totalmente vegana por enquanto e de tantos outros episódios de
amor que compartilhamos ao longo da nossa convivência. Tudo sobre nós dois sempre foi carinho e foi esse carinho que nunca deixou de existir que, mesmo agora, ainda ecoa por cada pedacinho da minha alma e que faz com que a sua morte não faça sentido nenhum ainda. Assim como as pilhas de roupa que
acumularam sem guardar desde a semana passada não fazem, nem os papeis espalhados na escrivaninha ou o fato de que eu preciso formatar 70 páginas nas normas da ABNT para amanhã. Quem foi que deixou a vida seguir assim tão rápido se eu ainda não entendi direito o que aconteceu? Me contaram que, já perto da sua partida, perguntou à sobrinha: “Como você vê o mundo?”. E é sobre isso que tenho pensado desde a segunda que vai fazer com que todas as próximas segundas daqui para frente tenham um pouco do que chamo de aura de chuchu. Assim como os primeiros de dezembro já têm. Ainda não cheguei à uma resposta e, confesso, só consigo pensar ‘mas que carai de pergunta difícil para se fazer num momento mais difícil ainda’, mas aí lembro que desde o banco na parte de trás do parque as perguntas dele nunca foram rasas e foi assim, mergulhando nas profundezas de várias perguntas como essa que eu tive a coragem de tomar decisões que até hoje me fazem ser quem eu sou. Como, por exemplo, a de começar a escrever. E embora eu esteja quase sucumbindo à tentação de dizer vários clichês sobre como tudo isso mudou minha visão de mundo – embora ele tenha me escrito uma vez que nada sobre nós nunca será clichê, mas sim clássico -, o que quase arranha uma conclusão sobre esse último questionamento é que hoje, nessa primeira quinta estranha desde a sua partida, eu vejo o mundo com as lentes que só o tapa na cara de uma perda dessa ordem pode fazer a gente ver. É como se a gratidão da convivência tomasse forma e me fizesse um carinho morno, a certeza da imortalidade da sua existência cheia de arte, vida e cor dançasse na minha frente com o seu molejo meio duro e o cheiro da sua presença cutucasse meu nariz, me dizendo que ele ainda está aqui, ele vai sempre estar aqui enquanto eu habitar este mundo porque vai ser sempre impossível te esquecer. Talvez daqui uns dias eu volte a enxergar tudo com a mesma miopia de quase dez graus de sempre, os mesmos olhos pequenos demais para apreender o que não é palpável, mas hoje eu vejo assim, só a imensidão de tudo que você é e sempre vai ser. Obrigada.
2 comentários:
Quanto afeto cabe em um conto?
Mundo cão sem porteira, diante dos olhos míopes, o coração segue carregando todo o amor do mundo...
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