terça-feira, 29 de janeiro de 2019

Lama


Salvador Dali


Lama

O conluio entre as empresas estrangeiras de mineração e o poder público no Brasil vem de longa data; mais precisamente a partir do momento em que elas foram privatizadas o descalabro atingiu as raias da inconsequência e da irresponsabilidade. Provam-no os desastres de Mariana e o de Brumadinho. Além da dor de vermos corpos soterrados, a medida exata do descalabro se fará sentir ao longo dos anos, silenciosamente, com a morte dos rios, com a impossibilidade de sobrevivência dos que deles dependiam.

Os desastres anunciados foram solene e criminosamente “esquecidos” por aqueles que deveriam ter a responsabilidade de agir, coibir, vigiar e impedir que voltassem acontecer. As poucas ou nenhuma ação contra as empresas gera nelas a percepção de impunidade e por isso fazem da terra seu quintal, das pessoas seus gado, da mesma forma como o sistema financeiro e bancário nos espolia e escraviza.

As pessoas choram, de desesperam com as imagens imediatas, depois passa; faz parte do cinismo social e midiático. A vida é assim, e o homem o construtor fajuto dessa engrenagem. Os parcos meios construídos ao longo da história brasileira, afim de que esses desastres fossem banidos, ao gosto dos governos são por vezes fortalecidos, por vezes enfraquecidos. As pessoas designadas para gerir os trabalhos de preservação obedecem a ordens e as cumprem por não quererem ver o emprego e o salário se evaporarem no ar. São coniventes, em última instância.

Quando o Estado anuncia – para quem quiser ouvir – os leitores na atual conjuntura são poucos – que se cobra multa demais, que se dá poder demais aos órgãos reguladores, quando estinguem ou reduzem tais órgãos, já não se trata de conivência, mas de ação criminosa. E não adianta a retórica mesminheira das condolências, do voltar atrás apressado e para inglês ver, sabe-se que, com a visão que impera no Brasil hoje, tais fatos serão novamente esquecidos.

A irresponsabilidade é tal que se anuncia o extermínio das aldeias indígenas, dos quilombos, da agricultura familiar e dos movimentos de luta por direito a terra e a moradia. Os cidadãos, relegados à existência como coisa, veem passivamente o bloco de sujos passar, quando não tomam parte dele e se deleitam com o que acham ser desgraça do outro, sem saberem que os próximos desgraçados serão eles mesmos.

O desastre de Brumadinho e o desastre de Mariana funcionam como insight da passividade, comandada pelo sentimentalismo boboca da grande mídia, dos olhos arregalados dos repórteres da hora. Fingem fazer jornalismo e tergiversam na cobrança efetiva dos culpados, fingem fazer jornalismo e oferecem circo em que o palhaço é o distinto público.

 O desastre, enfim, tomado como tragédia, trai na origem da linguagem a farsa e como farsa as notícias se propagam impedindo que o trágico se desenvolva e perdure como consciência do reconhecimento político do corpo social. A diferença entre as duas denominações está em que se toma por trágico o acontecimento que permite vivenciá-lo como uma ação última de consequências funestas ou prazenteiras, mas que leva à ação política; o que se toma por desastre atinge tão somente as dores passageiras e relegadas ao esquecimento sem que leve os indivíduas de uma nação, de uma tribo, de um ajuntamento humano, a agir.

O conluio, portanto, se mostra muito mais eficaz, quando dele extraímos os significados ocultos e a denominação correta de seus atos.

Um comentário:

Alexandre Faria disse...

Este texto se articula muito bem com este outro aqui: https://textoterritorio.blogspot.com/2018/11/para-tornar-legivel-o-desconforto.html
Vale conferir.

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