quarta-feira, 16 de outubro de 2019

A bonequinha de pano, conto de Cynthia Magluta

A bonequinha de pano 

Cynthia Magluta

Bonecas de Mariana Bezerra. Visite o canal Minhas Artesanices

Sabrina bateu a porta fugindo de mais uma discussão com seus pais. Flávio e Martha mal se olhavam com medo de iniciarem uma briga. Martha começou a chorar e Flávio ainda gritava que o comportamento de Sabrina tinha apenas uma explicação, só podia ser droga, muita droga. O final de semana começava mal.

Foi procurar no meio das coisas da filha. Cego de raiva chutou o baú na entrada do quarto. Começou a remexer nas gavetas da velha cômoda e no guarda-roupa de duas portas abarrotado de vestidos, calças, blusas. Todas as peças organizadas por cor, roupas leves de verão, casacos de frio. As gavetas do armário com divisórias para melhor separar e acomodar as pequenas peças, meias, calcinhas. A raiva não impediu que Flávio admirasse a arrumação da filha. Pena. Tanta ordem parecia ser só para o quarto, porque ela não estudava, saía todos os dias e voltava tarde da noite, cada dia com um novo cara. Só podia ser droga. 

Bem no fundo do armário, encontrou a bonequinha de pano. Sabrina ainda a guardava. Cambaleou até a cama para sentar-se. Abraçou a boneca, depois acariciou seus cabelos, desamassou o vestido. Encontrou uma enquanto parecia perder a outra. Ele a comprara na primeira viagem que fizera ao interior do Nordeste, viagem do novo emprego, salário melhor, mas com uma agenda intensa de visitas aos clientes em diversas cidades. Sabrina era pequena, devia ter uns 4 ou 5 anos. Adorou. Cabelo de lã verde, apliques de feltro para os olhos  e  a  boca,  vestidinho  com  diversas  cores,  fita  verde  e laço como gola. Elas eram inseparáveis, as duas bonequinhas de Flávio.

De tantas carícias, a bonequinha de pano perdeu a boca. Foi um corre-corre. Sabrina chorava que agora ela não ia saber se a bonequinha estava feliz. Flávio, que sempre gostara de desenhar e pintar, resolveu o problema. Com uma caneta pilot grossa fez um grande U vermelho no lugar da boca perdida. Mais feliz impossível. Vê, filha, ela sempre fica feliz com você. 

Sorriu ao lembrar-se de uma das viagens de férias. Sabrina já grandinha não queria levar a boneca, mas não sabia como deixá-la. Martha teve uma ideia. Colocaram a bonequinha sentada na janela de perninhas cruzadas esperando pela volta da família. Mãe, ela pode querer beber água. Um regador resolveu. Fica bonito com essas flores também, não é mãe? Regador  com  flores,  bonequinha  sentada  na  janela.  Tudo pronto para a viagem. Jamais se esqueceria daqueles minutos preciosos. Percebia o que era a felicidade.

Em que fundo de armário perdera sua Sabrina? Pedia ajuda à bonequinha que tantas vezes participara das histórias, da vida da garota. Levou-a para o escritório, que já tinha sido seu ateliê. Procurou o material de pintura para fazer reviver aquele instante de felicidade. Quase não tinha mais nada. 
Mariana Bezerra. Minhas Artesanices

No dia seguinte, levantou cedo e saiu em busca de tela, tintas, novos pincéis. Não sabia pintar de memória. Decidiu fotografar e pediu ajuda a Martha. Juntos refizeram a cena. Aguardaram a luz certa, se divertiram com seu projeto. 

Sabrina  voltou  no  final  do  domingo.  Os  pais  tinham saído para ir ao cinema, deixaram um recado e lanche na geladeira. Uma surpresa e tanto. Não ter briga na volta já era uma boa coisa. Foi dormir cedo. A rotina de segunda-feira foi cumprida. Tomaram um café rápido. 

O quadro foi tomando forma e dando tempo para o casal reviver emoções guardadas e quase perdidas. Sabrina não sabia o que acontecia, mas o clima familiar tinha um novo tom. Encontrava os pais conversando e rindo ao som de CDs que não tocavam há muito. Ficava em seu quarto ouvindo através da porta entreaberta.

Os pais avisaram que iam passar o final de semana fora. Sabrina ficaria em casa com seus irmãos. Antes de sair, deixaram o quadro embrulhado no quarto dela. Esperavam na volta reencontrar sua bonequinha. Sabiam o que podiam fazer.

Conto de Cynthia Magluta, publicado no livro A vida privada a céu aberto.

2 comentários:

Unknown disse...

Que delicadeza! Obrigado!
Horacio

Unknown disse...

Muitas vezes coisas simples são capazes de fazer retornar o humano que em nós jaz no esquecimento.

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