domingo, 27 de outubro de 2019

O mais duro espelho, crônica de Carlos Augusto Corrêa

O mais duro espelho

Carlos Augusto Corrêa

Foto de Wilton Montenegro.
Encarte do álbum Moleque (1974),
de Gonzaguinha.
Esses olhos meus de que a terra um dia não há de ter nenhuma compaixão leram recentemente uns textos que deixaram sombrio, ainda que por instantes, todo olhar sensível. É que um vizinho meu, professor do ensino médio, me entregou umas redações por ele aplicadas a alunos de primeiro grau. E uma vez mais concluo: o estudante, principalmente o de maior carência, tem absorvido todo o progresso das misérias antes de levá-la para a escola, sobretudo a pública.

Sei que não trago novidade alguma. Mesmo assim relato. Imensa é a vontade. Lógico: tão perto assim de minhas retinas, essas palavras machucadas arranham. Então vamos a um dos textos. Para o pesar do leitor e tristeza geral da nação, uma criança escreve o seguinte: "Minha mãe luta pra tirar meu irmão dessa lama. Ele fuma, ele é avião, outro dia ele quase morreu com os polícia, depois dessa lição ele disse que ia pará e não parô e acabô sendo preso, ele tá em Bangu 2".

Ponho de lado o português típico de seus onze anos de comunidade, válido como todo outro, sobretudo pra soltar o que incomoda. Porém o que mais interessa e fica bem mais fácil constatar é que essa menina que Deus nos deu e caiu numa Rocinha ou num Vidigal já engole a secura da vida. Severina, por sinal. A mesma de uma colega sua que descobriu uma vez perto de uma tendinha um amigo íntimo de seu pai alucinado. Cheirando ele estava, de alma desvairada ficou. E ao vê-la, foi logo ameaçando-a de morte caso falasse ao pai. Apertou-lhe um dos pulsos. Deu uns leves tapas no rosto e, gilete na mão, a exemplo de torturadores passados, belos modelos de bicho humano, fez que ia cortar a garota. E justo a ela que não cobiçara as coisas alheias. Nem era ali uma vendilhona do templo. Que presente essa alma recebe a caminho da escola!

É de um menino de sexto, sétimo ano essa adulta confissão: "Um dia desse meu tio deu porrada no meu primo no dia do aniversário dele, meu primo tava fazendo 13 ano, meu tio tava bêbado e cheiradão e tinha acabado de fumá e ele bateu, bateu, meu primo ficou roxo na cara, no corpo, na perna". Não vai constar dessas linhas o restante da crucificação promovida por esse tio Iscariotes até o garoto chegar desmaiado ao pronto-socorro, ajudado por amigos. O importante é notar que da mesma forma ofendida quando chegou para o atendimento deve ter saído, chegando talvez dias depois ao colégio com outro - bem outro - espírito de menino que esse menino quase sem espírito ainda deve arrastar por aí. A truculência de hoje, irmã-gêmea do nazismo, é uma espécie de cartilha que as crianças vão seguir do cotidiano até as carteiras de uma sala de aula.

A infância ferida desses autores mirins deixou igualmente a escola ferida. Não foi essa a aspiração de Anísio Teixeira para ambos. Caminha com pernas aflitas a escola maior com que tanto sonharam um Paulo Freire, um Darcy Ribeiro. Isso não significa que a escola tenha perdido as mãos. Ela ainda tem mãos: só que essas apenas tentam proteger do horror os meninos de nosso país. De todos os países, creio.

Tenho perto das mãos mais umas vinte redações. Uma de um moleque bem abusado, que levou um tiro na perna num tiroteio no Jacarezinho. Outra de uma criança que assiste a marginais passarem e passearem armados por seu barraco. Ou ainda de uma já adolescente que vê a irmã mais velha no crime do pó. E se desespera. Minhas mãos estão sonolentas. Mas o café é um anjo. Como parar de ler? São as crianças de minha terra. Poderiam ser de qualquer outra terra. São as crianças.

Uma delas que ainda não tinha chegado a Cristo abraçou o crime pra salvar a família do desespero. E furtou e esfaqueou quatro pessoas, uma delas o faxineiro de sua escola. Depois, influenciado por uma outra forma de crime, acumulou uma dívida que não pôde com o tempo saldar. Deixou, por isso, de ser uma criança de seu país para experimentar a escuridão da terra sobre o rosto e assim, sem qualquer cerimonial, chegar de fato a Jesus Cristo. Mas a estória continua. É que, não contentes com o seu assassinato, os membros invadiram a casa da ex-criança de meu país e mataram os irmãos. E aos pais mataram.Certamente seria bem grande a dívida. A punição se deu( para usar gíria política) em efeito dominó. Punição do tamanho de Sobibor.

Os tempos contemporâneos mancharam a educação. Os humildes fragmentos de vida transcritos são o melhor e o mais duro espelho. Essas crianças que não vieram da Babilônia nem sobreviveram ao Apocalipse têm, como disse o compositor, uma vida de gado, muitíssimo marcada. Elas parecem já ter nascido com uma cicatriz na alma.

Um comentário:

Unknown disse...

Alexandre e Oswald, digam ao fotógrafo, o Wilton Montenegro, que a foto estampada é muito expressiva.

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