domingo, 3 de novembro de 2019

"Olá, Irmãozinho", crônica de Carlos Augusto Corrêa

Fotograma de um filme inédito, de Felipe David Rodrigues

Olá, Irmãozinho

Carlos Augusto Corrêa


Agora há pouco, assistia a um documentário sobre 68 e me lembrei muito de você, Comprido. Durante aqueles anos de resistência, foram quase três, e os piores da repressão, tivemos uma convivência de princípios sólidos.

Mesmo novos (você um guerrilheiro vivendo integralmente a luta política, eu, um candidato a), já tínhamos uma responsabilidade acima do comum, e sabíamos que a qualquer hora podia acontecer a nós algo mais grave. Fomos cultivando esses princípios de solidariedade, de ajuda mútua, de respeito às classes populares, esses e outros traços eram uma espécie de muralha interior que conquistamos e que nos ajudava e ajudaria contra os piores reveses. Quantas vezes pensamos que o cafezinho bebido cuidadosamente ali num barzinho do Passeio Público, o Angrense, podia ser o último da vida.

Pois é, me lembrei fortemente de você. Nós construímos no início da mocidade bons laços de companheirismo, dia após dia, de encontros e debates e planejamentos, lembra?, construímos no calor da luta uma amizade que prometia ir se solidificando pelos anos. Sua prisão interrompeu este ciclo e há quase cinquenta anos não mais nos vimos.

Queria saber como transcorreu sua mocidade, como você atravessou a Nova República e depois os governos civis. Construiu família, filhos, Comprido? Exerceu a medicina? Continuou a militância no partido ou fora dele, em sua profissão? Há uns dez anos vi uma declaração sua denunciando um delator que queria reparo aos falsos danos morais que teria sofrido em plena ditadura. Então senti que suas ideias se mantinham.

Estou certo de que você manteve algo que caracteriza o homem essencial, que é a dignidade. Aliás, a sua coragem ao resistir à tortura aumentou em todos os seu amigos a dignidade que você passava.

E é por isso que não só me lembrei de você agora. Tenho me lembrado volta e meia quando nossa população, inconformada, se manifesta contra os sucessivos desmandos. E vou continuar me lembrando até essa minha voz rebelde parar de existir. Saudade, companheiro.

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