domingo, 17 de novembro de 2019

Sangue bão, Carlos Augusto Corrêa

Sangue bão

Carlos Augusto Corrêa 


https://pt.wikipedia.org/w/index.php?curid=2941674

Faz mais ou menos umas duas décadas eu ainda cortava o cabelo ali na rua do Catete num salão remediado. Meu cabeleireiro, o José, cara sobretudo paciente com meu cabelo que mais parecia uma juba ( ao contrário de hoje), me cortava a tal juba. Nisto notei pelo espelho que o próximo freguês, sentado quase atrás de mim, era um já sessentão calado, aparentemente de hábitos simples. Ele tinha as mãos cruzadas sobre as pernas e a cabeça baixa em ar por demais pensativo. Lembrava alguém do interior, apesar da roupa discreta e luxuosa.

De repente pus de lado minha distração, fixei o olhar e descobri: quem ali se sentava era ele, o poeta João Cabral de Melo Neto. De imediato tive vontade de interromper o corte e ter uma conversinha, não de pé de "oreia", mas uma fala rápida, só pra respirar o clima de estar diante da grandeza de um poeta do gênero. Meu jeito arredio, como sempre, funcionou pra me atrapalhar. Olhava pra ele, e José continuava, olhava de novo, e o cabeleireiro... Quis lhe perguntar qual tinha sido a sua experiência ao escrever "Educação pela Pedra". Não perguntei. Fui me enchendo de ansiedade até que me voltei pra José e falei:
- Cê sabe quem é este senhor que está esperando a vez?

- Hum, hum, respondeu José entretido com o corte.

- Zé, ele é depois de Drummond o maior poeta brasileiro contemporâneo. Poeta grandioso. É acadêmico, tem uma obra conhecida fora do Brasil.Seus livros são estudados em todo o país, a Espanha o respeita. Conhece mesmo?

E José:

- Claro que sim, Carlinhos. É o seu João, ele corta cabelo comigo faz um bom tempo. É sangue bão.

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