segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Um fragmento de "Davi", de Dani Rodrigues

... faço sexo com as palavras, surge o vazio na tela do computador. Hoje  faz  oito meses que vivi a experiência de estar sozinha no laboratório de análises clínicas. Aguardando o envelope com minha vida dentro dele. Como quando transei com você. Vazio em meu peito, ainda cheio de leite. Olho pela janela do apartamento, décimo oitavo andar e vejo a copa de árvores amarelas. Lagartixas correm na parede enquanto conto a história do meu nascimento e renascimento. Parece que foi ontem que nasci. Primavera lá fora e aqui dentro sempre inverno, inferno, enfermo. Minha infância reflete aquelas flores amarelas.

Sento-me na frente do computador, escrevo sobre a minha morte e sobre a experiência de parir a mim mesma. Na arte de esquecer, falsifico memórias, habituo, extingo, reprimo. Memórias vinculadas a estados do corpo, vinculadas aos hormônios, ficam esquecidas no fundo de nosso cérebro até que experimentemos o momento de emoções parecidas. Troco-as por este novo texto que brilha na tela do computador. 

Até que, na arte de esquecer, eu fique biologicamente experiente. Quero lembrar. E escolherei minhas lembranças, reforçando sinapses e percorrendo os mesmos caminhos, várias e várias vezes. Provarei 
do mesmo bolo de carne que você cozinhou para mim, e que comemos com vinho branco. Tomarei mate com pão e manteiga. Pastel de feira e caldo de cana. Macarrão à noite com vinho tinto. Cerveja belga para me deixar um tantinho tonta. Só para lembrar a alegria, a dor e o incômodo, que são parte dessa história. Irei me reescrever e me tornarei uma metáfora de mim mesma.


Do livro Davi


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