domingo, 26 de julho de 2020

Comprido, crônica de Carlos Augusto Corrêa

Comprido

Carlos Augusto Corrêa 

Foto: Guilherme Landim

Era em 1972, 73, não lembro bem, nós pegamos um ônibus ali em Botafogo sigilosamente. Entramos como se não nos conhecêssemos, pois, caso houvesse a prisão de um, o outro poderia se safar. Lembro que fazia um mormaço, aliás não sei de que mês, mas esse mormaço me passou uma inquietação, um enjoo, sensação de que algo estava fora mesmo do lugar, como costuma acontecer comigo em situações semelhantes.

Sentamos no mesmo banco, e o companheiro cujo nome de guerra era Comprido, ao menos para mim e para outro militante com quem nos encontrávamos sempre, tirou discretamente duas ou três folhas cuidadosamente dobradas e foi lendo quase sussurrando algumas partes referentes à segurança que todo militante devia ter para evitar uma prisão. E dizia ser por isso que a VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) a que o subLênin que aqui lhes escreve pertencia era uma das poucas organizações que prezavam a segurança de seus membros. Daí o número de prisões dela ser bastante reduzido.

E por ali, olhando cuidadosamente para os lados, fomos conversando em tom baixíssimo até que entramos no Estácio, bairro na ocasião já maltratado, quando ele me disse que iria saltar à altura da antiga zona do Mangue pra fazer um contato importante. Até me convidou a descer junto e ficar a certa distância do contato (a gente chamava de "ponto") e depois nós voltaríamos a  conversar. Eu disse ser melhor nos encontrarmos depois. Eram mais ou menos duas horas e combinamos então que nosso encontro se daria no final da tarde ali no Palheta, bar tradicional da Saens Pena, que tinha um café muito esperado, ora à tarde, ora o da noite, às seis, às oito, às dez depois da sessão dos cinemas dali da praça. E assim foi feito. Comprido se levantou sem extravagâncias de gesto, desceu e lá se foi.

Bem, cheguei à hora combinada ao Palheta, esperei o irmãozinho por dez minutos mas sem dar a impressão de que esperava. Por isso resolvi nesse tempinho tomar café e entabular conversa sobre futebol com um cinquentão. Comprido não veio e fui pra casa. Muito tempo se passou depois desse encontro. Quatro e cinco dias, seis e oito meses. Imaginei o que devia ter acontecido. E aconteceu de fato. Soube pelos jornais depois desse tempo que ele havia sido preso numa tarde e cumpria pena de não sei quanto tempo. Ainda bem que a memória aqui me falha. Eu e o outro companheiro que, como já disse, nos reuníamos com Comprido (aliás, não falei no início mas era o único contato nosso com a organização) soubemos por intermédio de militantes de outros partidos que ele tivera uma reação de firmeza ao ser preso. Tentou se livrar do carro em que fora lançado e ao chegar à Saens Pena pôs a cabeça pra fora da janela e gritou que estava sendo detido e seria torturado pela ditadura. Ora, não sei se essas minúcias foram verídicas, mas se aconteceram foram ditas para me preservar e evitar que eu fosse a seu encontro.

Comprido sabia mais de mim do que eu dele e, mesmo assim, resistiu à tortura e não nos delatou. Ressalto a sua coragem no sofrimento, traço que se liga à firmeza de caráter e, pois, à dignidade. Ainda guardo desse mineiro de São João del Rey, hoje médico, talvez já aposentado, o seu jeito aberto, sem livro nas mãos, de fala bem pronunciada e com uma gargalhada, quando podia dar, de você escutar em Portugal. Éramos moços, tínhamos o verdor de uma ideia que não saía da cabeça mas ali nos separamos para sempre. Nunca mais vi o moço, nunca mais vi o Comprido com quem gostaria de ter convivido na maturidade. Comprido que soube se chamar Carlos Alberto Santos pela triste notícia que meus vinte e tantos anos leram desalentados no jornal.

Um comentário:

Unknown disse...

Essa crônica me deixa comovido. Ainda hoje o procuro. Acho que o nome dele foi o que vi no jornal.

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