sábado, 2 de novembro de 2019

Fotografismo - Entrevista com Rute Gusmão

Fotografismo, arte da capa do livro Anacrônicas

Entrevista com Rute Gusmão


Nesta entrevista apresentamos o trabalho de Rute Gusmão, artista plástica, poeta e escritora, autora de Moldura da pele e Sapatilha no descampado, pela TextoTerritorio e Contos de Oficina, pela Editora Scortecci.


TextoTerritório: Como nasce o seu interesse pelas artes plásticas e quando e por que resolve incluir a literatura como forma de expressão? 

Rute Gusmão: Meu interesse pelas artes plásticas nasceu junto com o interesse pela literatura. Durante o curso Científico no CAp da UFRJ, orientada pela professora de português Terezinha Pinto, passei a ler autores brasileiros e latino-americanos. Ela levava poetas e prosadores para debates com os alunos, inclusive nos apresentou a Manuel Bandeira, já idoso. Comecei a escrever versos influenciada também pelos poetas que publicavam nos Cadernos do Povo Brasileiro (Violão de Rua), divulgados pelo Centro Popular de Cultura da UNE. Influenciada pela poesia dos Violões, publiquei meu primeiro poema no jornal do Diretório Acadêmico da Escola de Serviço Social da PUC/RJ, onde estudei.
No colégio, ilustrava trabalhos escolares com meus desenhos. Nos anos 60, eu e uma irmã íamos a São Paulo para as Bienais Internacionais. Lá, e também em exposições no Rio, conheci a arte concreta e neoconcreta. No início dos anos 70 fiz uma viagem a Salvador e voltei pintando cenas primitivas. No Rio procurei o Centro de Pesquisa de Arte Ivan Serpa, onde pude perceber que aquela pintura não tinha a ver comigo e fui orientada a experimentar outras formas de expressão. Em 1973 produzi, como aluna de Sergio Campos Mello, dois objetos em formato de livros pouco convencionais, que tratavam de identidade e liberdade. Em 1974 fui premiada numa coletiva em Niterói com um trabalho fotográfico, poético e conceitual, em que articulei palavras com imagens do horizonte. A partir dali segui trajetória ativa nas artes plásticas, de cerca de vinte anos, quarenta e poucas exposições. 

Fotografismo, Rute Gusmão
TT: Com Fotografismo, trabalho que inspirou a capa de um dos livros da editora, há uma proposta de construção da imagem a partir de um elemento altamente subjetivo, a assinatura. Há também, ali, uma relação forte com a escrita, o manuscrito. Como você pensou na época, o sentido político dessa construção? 

Capa de Anacrônicas
RG: Os livros de artista se afirmaram no Brasil nos anos 50, precedidos pela poesia concreta e neoconcreta, cujos livros-poemas me interessaram. A partir de meados dos anos 60 a tendência do livro, como forma de arte, começou a afirmar-se, de início entre arte e literatura, ampliando-se como expressão política e reflexão sobre a arte. O livro de artista permite a ideia desenvolvida de forma sequenciada e ao leitor acompanhá-la, levantar questões, voltar, ir além e até surpreender-se com aquela unidade expressiva em si. Na época eu questionava os suportes da arte, a relação conteúdo/continente na obra, a figura/fundo, usando a tela e a moldura, a caixa de pintura e seu conteúdo e o próprio corpo. Nos anos 60 vivi a repressão durante a ditadura civil-militar e encontrei nas artes plásticas — assim como parte daquela geração de artistas — um lugar para pensar regime e sistema, arte e espaço oficial, obra e autor. A ampliação fotográfica de minha assinatura em Fotografismo foi pensada nessa linha. 
Meus livros de artista, que chamava de cadernos de arte, foram produzidos sistematicamente entre 1975 e 1984, no total de dez, com pequenas tiragens de 1 a 17 exemplares, impressos em silkscreen, fotolitografia, xerox e manuscritos com tinta. Foram apresentados em exposições, simultaneamente a performances, audiovisuais, objetos e imagens, plásticos impressos e sequencias de fotos que produzi. Em quase todos os livros, inclusive nos quatro feitos em xerografia, usei a palavra manuscrita. Fotografismo foi o primeiro que criei, impresso em 1975 na Escola de Arte e Desenho de Brighton, onde trabalhei com bolsa do Conselho Britânico; impresso em fotolitografia, 14 exemplares, divulgado pela primeira vez numa exposição em Londres, no ano seguinte. 

Fotografismo, Rute Gusmão
Amir Brito Cadôr, da EBA/UFMG, analisa Fotografismo, que integra a coleção de livros de artista da biblioteca daquela escola: "A linha fina da escrita torna-se uma linha grossa; o contorno nítido torna-se irregular, imperfeito; a ampliação revela a descontinuidade do traço, falhas no fluxo de tinta da caneta ao escrever com rapidez. Para os calígrafos japoneses, a imperfeição é um sinal de sua humanidade" (Entre ser um e ser mil, org. Edith Derdyk, Senac, 2013). 

A meu ver, em Fotografismo o leitor pode seguir os movimentos da mão que desenha/assina. O livro não contém uma descrição, nele a narrativa se limita a um acontecimento — o movimento da mão da artista — e, no final, o leitor pode experimentar uma surpresa com a visão total do desenho, a assinatura completa. O desenho é único; nele, laços, enlaces, voltas, balões, linhas retas e curvas, verticais e horizontais não se repetem nas sucessivas páginas. São partes recortadas da assinatura da autora, que tradicionalmente deve identificar a obra. Então o leitor poderá colocar questões em torno da arte, da obra, da autoria e identidade. 
Com Fotografismo participei, ao todo, de sete exposições no Rio de Janeiro, Minas Gerais, Nova Iorque, Buenos Aires e Londres. Integra cinco acervos de universidades e museus, brasileiros e estrangeiros. Todos os meus cadernos de arte estão em acervos e a maioria circula livre de minha intervenção. 

Fotografismo, Rute Gusmão
TT: Sua poesia cita frequentemente obras de arte e artistas plásticos, como a Rute Gusmão poeta se relaciona com a artista? 

RG: Elementos de construção da prosa e da poesia, as imagens nem sempre partem da imaginação; para alguns autores foram vistas ou sonhadas. As telas, até mesmo as abstratas e geométricas, muitas vezes contam histórias e sugerem poemas com suas imagens, cores, formas e texturas. 
Sou sensível ao visual, e não por acaso me envolvi com as artes plásticas. Nas poesias às quais a pergunta se refere, parto do visual que, por alguma razão subjetiva ou objetiva, me sensibilizou, para chegar à poesia ou conto. Às vezes posso imaginar, a partir de uma pintura ou foto, cenas, desdobramentos, sensações, sentimentos, personagens, viajando por dentro da imagem. 


TT: Nos anos 60/70 era intensa a relação das artes e dos artistas com a vida política nacional. Como você vê esse quadro hoje? 

RG: A situação mundial era outra, não tínhamos vivido a globalização nem o neoliberalismo. A crise do petróleo dos anos 70 estava começando, as políticas neoliberais despontavam e vivíamos sob ditadura. Hoje, em 2019, com o domínio do capital financeiro, o mundo é outro, vivemos a barbárie e sob uma ditadura repaginada. 
Nos anos 70/80 existiam, em vários Estados, associações de artistas plásticos profissionais. Aqui no Rio a ABAPP organizou 300 filiados e foi para a rua dar sua contribuição visual à campanha das Diretas Já. Creio que nas últimas décadas experimentamos no país, por várias razões, o declínio político-institucional que envolveu organizações de trabalhadores, populares, culturais e os poderes da República. A crise não é só econômica, em sua dimensão política envolve a organização da sociedade e a cultura, violentamente atacadas pelo governo e classes que o elegeram e conservam. Hoje o desafio é a construção de novas formas e linguagens que possam dar conta do enfrentamento ao desmonte do que construímos a partir de 1988. 


TT: Como você vê as manifestações das artes plásticas hoje e como a poeta lê a poesia contemporânea? 

RG: Os artistas plásticos estão mobilizados. Há uma exposição — À sombra das palmeiras — numa faculdade do Rio reunindo 70 artistas num espaço alternativo. Nas últimas décadas se ampliou, tanto nas artes plásticas quanto na criação literária, o domínio do mercado globalizado, a excluir, com base em critérios econômicos, o que não lhe convém. Alguns artistas resistem, em compensação, gerações de criadores desapareceram. Como nas artes plásticas, os poetas contemporâneos enfrentam a pressão excludente do mercado, dos meios de comunicação e da circulação da obra, mas resistem. Dessa resistência a Editora Texto Território tem participado. Com o esgotamento do projeto neoliberal nos países da América do Sul é fundamental a resistência popular, a busca de formas alternativas para sua organização e afirmação de nossa arte e cultura.


2 comentários:

Alexandre Faria disse...

Oi, Rute, é grande alegria uma obra sua estar na capa do meu livro.

Unknown disse...

Tantos anos desde o tempo em que você fazia arte conceitual, que eu - também longe geograficamente aqui na Inglaterra - me esqueci da extensão do seu envolvimento nela.
Depois veio a literatura, que você abraçou com igual paixão e perfeicionismo. Tenho prazer na leitura de seus livros e só posso desejar que continue a escreve-los - um após o outro!

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