Ontem o professor Alfredo Bosi, entrou para a lista das vítimas da Covid. Em sua homenagem, publicamos no Blog um trecho do seu livro O ser e o tempo da poesia.
É um texto que apresenta mais teoricamente um dos motivos pelos quais a Editora TextoTerritório acredita na publicação de poesia.
Fazemos parte dessa luta que a poesia trava com o controle do pensamento.
Não calamos a boca, ainda que, cada vez mais, os olhos estejam se fechando.
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Poesia-resistência
A ideologia não aclara a realidade: mascara-a, desfocando a visão para certos ângulos mediante termos abstratos, clichês, slogans, ideias recebidas de outros contextos e legitimadas pelas forças em presença. O papel mais saliente da ideologia é o de cristalizar as divisões da sociedade, fazendo-as passar por naturais; depois, encobrir, pela escola e pela propaganda, o caráter opressivo das barreiras; por último, justificá-las sob nomes vinculantes como Progresso, Ordem, Nação, Desenvolvimento, Segurança, Planificação e até mesmo (por que não?) Revolução. A ideologia procura compor a imagem de uma pseudototalidade, que tem partes, justapostas ou simétricas (“cada coisa em seu lugar”, “cada macaco no seu galho”), mas que não admite nunca as contradições reais. A ideologia dominante não consegue ser, a rigor, nem empírica nem dialética. Não consegue ser empírica porque as leis do mercado e da burocracia desprezam a face do ser vivo singular. A ratio abstrata transformou o corpo e a cabeça de cada indivíduo em mão-de-obra sem nome nem rosto que pode ser substituída a qualquer hora. Das fontes da natureza fez matéria-prima; do fruto do trabalho fez mercadoria a ser trocada e consumida. Pela força mesma dessa abstração, que o capitalismo incha e reproduz a cada momento, a ideologia tampouco suporta o momento da negação com que o pensamento dialético exige que a “má positividade” seja superada.
Sob o peso desse aparelho mental não totalizante, mas totalitário, vergam opressos quase todos os gestos da vida social, da conversa cotidiana aos discursos dos ministros, das letras de música para jovens às legendas berrantes dos cartazes, do livro didático ao editorial da folha servida junto ao café da vítima confusa e mal amanhecida.
A poesia resiste à falsa ordem, que é, a rigor, barbárie e caos, "esta coleção de objetos de não amor" (Drummond). Resiste ao contínuo “harmonioso” pelo descontínuo gritante; resiste ao descontínuo gritante pelo contínuo harmonioso. Resiste aferrando-se à memória viva do passado; e resiste imaginando uma nova ordem que se recorta no horizonte da utopia.
A poesia resiste à falsa ordem, que é, a rigor, barbárie e caos, "esta coleção de objetos de não amor" (Drummond). Resiste ao contínuo “harmonioso” pelo descontínuo gritante; resiste ao descontínuo gritante pelo contínuo harmonioso. Resiste aferrando-se à memória viva do passado; e resiste imaginando uma nova ordem que se recorta no horizonte da utopia.
Quer refazendo zonas sagradas que o sistema profana (o mito, o rito, o sonho, a infância, Eros); quer desfazendo o sentido do presente em nome de uma liberação futura, o ser da poesia contradiz o ser dos discursos correntes. (Ainda que nem sempre possa impedir de todo que um ou outro pseudovalor formal vigente - e, daí, obliquamente ideológico - venha a cruzar o seu jogo verbal.)
A luta é, às vezes, subterrânea, abafada, mas tende a subir à tona da consciência e acirrar-se porque crescem a olhos vistos as garras do domínio. Em termos quantitativos, nunca foram tão acachapantes o capital, a indústria do veneno e do supérfluo, a burocracia, o exército, a propaganda, os mil engenhos da concorrência e da persuasão. A ferida dói como nunca. Os seus lábios estão sempre abertos. Não os fechará quem feche os olhos.
A luta é, às vezes, subterrânea, abafada, mas tende a subir à tona da consciência e acirrar-se porque crescem a olhos vistos as garras do domínio. Em termos quantitativos, nunca foram tão acachapantes o capital, a indústria do veneno e do supérfluo, a burocracia, o exército, a propaganda, os mil engenhos da concorrência e da persuasão. A ferida dói como nunca. Os seus lábios estão sempre abertos. Não os fechará quem feche os olhos.
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, pp. 168-170.
Um comentário:
Grande crítico literário, grande analista. Vai fazer falta.
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