Entro no mercado para as compras semanais com a meia culpa de quem sabe que comer no Brasil atual é um privilégio sim. A cada item retirado da prateleira, lembro da minha mãe lendo em voz alta a história de um menino de dezesseis anos que não conseguia dormir por conta da fome que sentia. Perdeu a mãe para a COVID e o pai assassinado pelo roubo de um pão – que não cometera. Passou a se sustentar vendendo picolés, que ninguém compra no frio. Agora estava frio e ele se alimentava há semanas com macarrão cru e um restinho de achocolatado. Meus olhos umedecem e algo aqui dentro embrulha. Desisto de pegar o cappuccino. Não me é essencial.
Voltando para casa no meu carro a gasolina - que aumentou mais de quarenta centavos da semana passada para cá - vejo os bares cheios. Aquele com o-melhor-torresmo-do-Brasil está entupido de gente até nas calçadas, atrapalhando quem precisa passar correndo para o trabalho, mercado ou qualquer outra coisa que não seja ficar bêbado ajudando a disseminar vírus em plena pior pandemia do século. A média móvel de mortes continua beirando as duas mil, mas bares podem funcionar depois de não sei qual decreto e as pessoas se valem disso para justificar o fato injustificável de que escolheram, por livre e espontânea vontade, estar ali, apesar de os números gritarem que não deveriam. A alegação é que está tudo dentro dos protocolos, ignorando o fato de que o primeiro protocolo é não aglomerar.
Respiro fundo. Eu queria a sorte de um país tranquilo com sabor de fruta mordida, um presidente que fosse minimamente racional e uma população ciente de que o caos não acabou porque ela se cansou de ficar em casa ou está com vontade de tomar cerveja artesanal com os amigos no novo lugar alternativo que abriu no bairro sensação da cidade. É pedir muito?
Parada no sinal penso no meu primeiro namorado lutando pela vida num hospital ali perto. Ficou em casa todo esse tempo e respeitou todas as recomendações, mas descobriu uma doença dessas que chegam com tudo e agora está numa situação difícil. É justo que ele esteja correndo perigo? Semana passada fiquei sabendo que uma conhecida que usou e abusou dos encontrinhos desde março do ano passado estava com COVID. Comemorei. Depois me senti culpada por isso, mas nesse meio segundo, nesse primeiro momento em que recebi a informação, celebrei o fato de que alguém que fez tanto por merecer estar finalmente sendo punida por isso. Em que foi que eu me transformei?
O peso de viver em dois-mil-e-vinte-e-um me atravessa mais um pouco.
Encosto o carro e abro o Instagram para pedir doações de sangue. Vejo nos vídeos postados reuniões desnecessárias em prol de uma saúde mental que segue sendo banalizada sem nenhum escrúpulo. Sigo me negando a acreditar que a cura para os males da mente reside em se reunir com mais dezessete pessoas para fazer uma dancinha nova que viralizou no TikTok ou encarar uma festa clandestina sem máscara. Meu coração acelera e as mãos começam a suar. Me sinto pequena. É como se estar em casa há mais de um ano não fosse o suficiente. Como se cada campanha que vejo as pessoas fazendo em prol de alimentos e roupas não chegasse nem perto do que é necessário para consertar essa situação. Como se gritar nas ruas contra ogoverno fosse mais uma tentativa vã de ser ouvida numa sociedade que há muito parou de querer escutar e só olha para o próprio umbigo.
Chego em casa e abro a garagem correndo. O pavor de encontrar alguém que não seja aqueles que moram comigo aumentou nos últimos tempos. Será que algum dia vou me sentir confortável de novo tendo gente perto de mim? Deixo as compras para serem higienizadas e desvio dos cachorros nocaminho direto que faço até o banho. Não preciso me olhar no espelho para saber que envelheci alguns anos no meio disso tudo. Me enfio no moletom largo que foi do meu irmão e deito à espera do sono, que vem só depois de eu remoer tudo aquilo que me sufoca o tempo todo: a dor de não conseguir superar uma perda antes que outra aconteça; o ranço e raiva que sinto de quem antes eu amava, mas desencantei ao ver as atitudes em relação ao vírus e ao próximo desde que a pandemia começou; a CPI, que só aumenta a revolta com a escolha errada de dois-mil-e-dezoito e faz pipocar sentimentos nada ortodoxos no fundo do meu coração; o presidente, que despertou minha fúria num grau que eu nem sabia que existia e que habita meus sonhos quase que cotidianamente em cenas que, quase sempre, terminam com revolta popular e ele morto; a ansiedade de não saber mais o que fazer para me distrair; o choque de sentir prazer com certas desgraças alheias & a certeza de que o novo normal é o fundo do poço.
Hoje eu me lembrei, saudosa, de março de dois-mil-e-vinte, quando a gente achava que tudo isso ia acabar logo e não sabia muito bem o que estava acontecendo – a ignorância é mesmo uma dádiva! Nesse tempo longínquo recebi uma mensagem religiosa dizendo que essa situação toda era uma oportunidade para a humanidade crescer e se desenvolver espiritualmente. Olhando para ela agora, só consigo pensar que, se for verdade mesmo, falhamos miseravelmente. Se tem algo acontecendo, é o apocalipse. E ele é horroroso e agora.
2 comentários:
Quando um texto representa bem os seus ódios, vc acaba amando ❤
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