Oficina de Escrita
Uma curadoria de textos para
pensar o trabalho do escritor
Poesia, filosofia e o mundo contemporâneo
Antonio Cicero
Vivemos numa época que — com a Internet, os computadores, os celulares, os tablets etc. — experimenta o desenvolvimento de uma tecnologia que tem, entre outras coisas, o sentido manifesto de acelerar tanto a comunicação entre as pessoas quanto a aquisição, o processamento e a produção de informação. Seria, portanto, de esperar que, podendo fazer mais rapidamente o que fazíamos outrora, tivéssemos hoje à nossa disposição mais tempo livre. Ora, ocorre exatamente o oposto: quase todo mundo se queixa de não ter mais tempo para nada. Na verdade, o tempo livre parece ter encolhido muito.
Acontece que a poesia exige mais tempo livre do que a fruição de obras pertencentes a outros gêneros artísticos. Não precisamos nos concentrar numa canção ou numa pintura ou numa escultura ou na arquitetura de um prédio para que elas nos deleitem. Podemos apreciá-las en passant. Não é assim com um poema escrito. Quem lê um poema como se fosse um artigo, um ensaio ou um e-mail, por exemplo, não é capaz de fruí-lo. Para apreciar um poema é necessário dedicar-lhe tempo.
Por outro lado, tanto escutar uma palestra de filosofia quanto ler um texto filosófico exigem concentração, reflexão, questionamento, discussão consigo mesmo e/ou com outros: isto é, exigem tempo. O fato é que, numa época em que todos se queixam de falta de tempo, é evidente que sobram argumentos para aqueles que pretendem não haver mais, atualmente, lugar para a filosofia ou a poesia.
Mas o fato é que, nesse ponto, a situação da poesia parece ainda mais questionável que a da filosofia. Por quê? Porque o estudo da filosofia promete algumas recompensas um pouco mais palpáveis. Quem o faz, espera, em geral, que ela lhe dê certos conhecimentos ou orientações para a vida. Espera, por exemplo, que ela lhe aponte o que pode e deve conhecer, o que pode e deve fazer; o que pode e deve esperar da vida. Mas é difícil saber o que é que se aprende, de teórico ou prático, com o belo “Soneto do desmantelo azul”, de Carlos Pena Filho, ou com o também belo “Pavão vermelho", de Sosígenes Costa.
Ora, a alegria, esse pavão vermelho,
está morando em meu quintal agora.
Vem pousar como um sol em meu joelho
quando é estridente em meu quintal a aurora.
Clarim de lacre, esse pavão vermelho
sobrepuja os pavões que estão lá fora
É uma festa de púrpura. E o assemelho
a uma chama do lábaro da aurora.
É o próprio doge a se mirar no espelho.
E a cor vermelha chega a ser sonora
nesse pavão pomposo e de chavelho.
Pavões lilases possuí outrora.
Depois que amei esse pavão vermelho,
os meus outros pavões foram-se embora.
E como ninguém tem tempo para quase nada, por que perder tempo com algo que nada ensina de útil? A menos que o faça para se distrair um pouco do trabalho. Mas, como distração, não são poucos os que hoje afirmam que a poesia ficou para trás: que foi superada pelos joguinhos eletrônicos, por exemplo, que exigem menos pensamento e teriam mais a ver com o ritmo da vida contemporânea.
Pois bem, penso o contrário. É exatamente numa época de aceleração desembestada que a poesia mais se faz desejável. Por quê? Porque o que me parece inteiramente indesejável é a aceitação passiva da inevitabilidade do encolhimento do nosso tempo livre.
A verdade é que, se praticamente não temos mais tempo livre, isso ocorre porque praticamente todo o nosso tempo - mesmo aquele que se pretende livre - está preso. Preso a quê? Ao princípio do trabalho, ou melhor - inclusive, evidentemente nos tais joguinhos eletrônicos —, do desempenho. Não estamos livres quase nunca porque nos encontramos numa cadeia utilitária em que parece que o sentido de todas as coisas e pessoas que se encontram no mundo, o sentido inclusive de nós mesmos, é sermos instrumentais para outras coisas e pessoas.
Nessas circunstâncias, nada e ninguém jamais vale por si, mas apenas como um meio para outra coisa ou pessoa, que, por sua vez, também funciona como meio para ainda outra coisa ou pessoa, e assim ad infinitum. Pode-se dizer que participamos de uma espécie de linha de montagem em moto contínuo e vicioso, na qual se enquadram as próprias “diversões" que se nos apresentam imediatamente.
Em tal situação, parece-me que uma das poucas ocasiões em que conseguimos romper a cadeia utilitária cotidiana é quando, concedendo a um poema a concentração por ele solicitada, permitimos que nosso tempo seja regido pelo poema. Configura-se então um tempo livre, isto é, um tempo que já não se encontra determinado pelo princípio do desempenho.
Afinal, a rigor, o poema não serve para nada. Ou bem a leitura de um poema recompensa a si própria, isto é, vale por si, ou bem ela não vale absolutamente nada.
CICERO, Antonio. Poesia e filosofia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. pp.11-13.
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