sábado, 17 de abril de 2021

Lobisomem, Márjori Corrêa Mendes

Márjori Mendes é uma autora que acompanhamos nas redes sociais há muito tempo. É incrível sua capacidade de construir narrativas fluentes, que extraem reflexões profundas e delicadas de cenas banais da vida cotidiana.

Com este "Lobisomem" ela nos conta a história de uma professora de inglês que se desdobrou para driblar a censura no colégio militar.

 
Imagem de Pezibear por Pixabay
 
De todas as experiências curiosas que o ser professora tem me proporcionado, trabalhar no Exército foi, de longe, a mais excêntrica. Lecionar em uma escola-quartel, tendo obrigações não apenas didáticas, como também bélicas, me rendeu histórias que vou levar comigo para o resto da vida. Das provas de tiro aos tombos de cara no chão na frente dos colegas de trabalho na corrida matinal obrigatória, passando também pelo dia em que uma perseguição policial caiu no meio do meu serviço e por aquela vez em que almocei ração humana no meio do mato depois de andar oito quilômetros com uma mochila pesada nas costas: se tem uma coisa que ficou depois da minha baixa foram os inúmeros casos inacreditáveis que tenho para contar.

Mas mais bizarro que tudo isso foi o contexto da minha vida em que esse momento se inseriu. Cansada de ser torturada psicologicamente no meu antigo emprego pela minha chefe abusiva que achava que, por me pagar um salário, era dona da minha vida e precisando de um pagamento digno, pois sustentava minha família praticamente sozinha depois que meu pai perdeu o emprego três anos antes e não conseguia encontrar mais nada devido à idade que já avançava, vi naquela seleção uma chance de pegar um fôlego antes de alçar novos voos. Ao mesmo tempo, começava o meu primeiro amor lésbico e, embora não fosse uma regra clara e escrita, sabia que ele não era bem-vindo ou visto naquele ambiente depois de ouvir, de mais de uma pessoa e em momentos completamente diferentes, coisas do tipo “ainda bem que não tem nenhuma sapatão aqui para dar em cima da gente” ou “tá vendo aquelas meninas ali? Elas n-a-m-o-r-a-m”. Como se tudo isso já não fosse o suficiente, o ano era 2018, eu via com crescente angústia e desespero aquele-que-não-deve-ser-nomeado ganhando popularidade rumo à presidência e, na condição de militar temporária que era lembrada a todo momento que poderia ser dispensada a qualquer hora já que o contrato era renovado anualmente, não me sentia à vontade ou livre para emitir nenhuma opinião sobre nada, nem nas conversas informais de trabalho, nem na internet e, confesso, às vezes nem em voz alta comigo mesma pois o medo de estar sendo vigiada era real.

Foram dias difíceis em que, para sobreviver, precisei da ajuda de uns remedinhos, pois não sendo livre para falar da minha vida pessoal – visto que muito dela incluía meu amor brejeiro – ou para gritar aos quatro cantos do mundo, para quem quisesse ouvir, o quanto repugnava Bolsonaro e tudo aquilo que ele dizia/representava, fui me calando. E de tanto me calar, já não cabia mais em mim e comecei a questionar qual era o sentido de ganhar aquele dinheiro se para isso eu precisava anular cada parte do meu ser que não se encaixava ali. Entre a cruz e a espada, fui tendo crises de ansiedade cada vez mais frequentes e passei a me enxergar como a própria prostituta pedagógica, vendendo minha voz e meus princípios por uma renda minimamente digna num país que parece sentir orgulho de desdenhar da educação.

Até o dia do Lobisomem.
Quando achei que a situação não podia piorar, os debates televisivos começaram. A preocupação com o que pudéssemos falar em sala de aula era tanta que recebemos instruções explícitas dizendo que era estritamente proibido falar sobre qualquer coisa relacionada à política com os alunos. Qual foi a primeira pergunta que meus alunos do terceirão fizeram quando entraram em sala de aula naquela terça de manhã?

- Tenente, em quem a senhora vai votar?
 
Desconversei e tentei seguir com a aula, mas era primeira eleição na qual eles participariam e parecia que a única coisa que interessava era discutir propostas, visões e candidatos. Eu achei aquilo  tudo muito lindo – por dentro, claro! – e, quando começava a me sentir frustrada por não poder participar como gostaria da conversa, tive uma ideia que na hora me pareceu muito boa: naquele encontro, iríamos jogar Lobisomem.
 
Sou professora de inglês. Jogos fazem parte da minha prática docente. Com alunos avançados como estes eram, jogos eram perfeitos para treinar a oralidade. Tínhamos acabado de começar uma unidade intitulada Crime & Punishment (que em bom português significa Crimes & Punições) e decidi que, para abrir os trabalhos, faríamos esse jogo, que é uma espécie de RPG cujo objetivo era convencer o outro através do discurso. Em linhas gerais, a ideia é simples: todos estamos em uma vila medieval que está sofrendo ataques de lobisomens infiltrados que assassinam moradores durante a noite. Ao longo do dia, todos os participantes – incluindo os assassinos - devem discutir quem eles acham que podem ser os lobisomens e votar para expulsá-lo da vila, a fim de proteger a todos. O jogo acaba quando se consegue eliminar todos os lobisomens ou quando temos um número igual de lobisomens e pessoas boas e a votação não é mais suficiente para proteger o lado bom da força.
 
Em linhas um pouco menos gerais, a ideia do jogo é sensacional. Antes de tudo, sorteamos os personagens e todos sabem o papel que vão desempenhar ao longo da brincadeira, embora não possam contar para ninguém (apenas os lobisomens se reconhecem quando precisam escolher quem vão matar). A partida se dá em rodadas, sendo que cada uma tem dois momentos: a noite, onde todos estão de olhos fechados, em silêncio e só abrem os olhos quando são chamados por Deus (também um personagem), que é quem conduz tudo, é onisciente, onipresente e sabe exatamente quem é quem ali, apesar de não interferir em momento nenhum. E tem também a hora que chamamos de dia, que é quando todos estão de olhos abertos e rola a parte da argumentação e a eliminação de um participante acusado de estar ligado aos crimes da noite anterior. Quando sai, ele não revela qual era seu papel no jogo.
 
No que diz respeito aos personagens, aliás, além dos lobisomens temos uma grande variedade. São eles: 1. a Criança Curiosa, aquela que não está no BBB mas pode dar uma espiadinha durante a noite e tentar ver quem são os lobisomens quando eles são convidados a matar; 2. a Bruxa, que sem saber quem é quem, tem o poder de matar ou salvar alguém da morte após a ala lupina ter dado seu veredicto; 3. os Videntes, que escolhem alguém para sonhar toda noite e descobrem se essa pessoa é boa ou ruim; 4. o Talismã, que não morre durante a noite; 5. o Bala de Prata, que até morre durante a noite, mas tem o direito de levar um lobisomem consigo e; 6. as Vítimas, que não têm, por si só, nenhum poder especial além de suas próprias palavras e intuições e dependem, em muito, de como os outros personagens jogam para se guiar. Se for procurar, a gente pode até acrescentar mais alguns, mas para mim só estes já são um prato cheio.

Tivemos tempo para duas partidas nessa aula e, nas duas, os Lobisomens utilizaram toda a sua lábia e conseguiram ganhar. A turma ficou abismada com esse poder todo de persuasão e não conseguia entender o que tinha acontecido. Como o bem de repente perdeu para o mal tantas vezes assim? Sem nenhum aviso? Mas eu tinha entendido muito bem e, como boa professora que sou, propus algumas reflexões sobre o assunto.
 
Aquele dia eu não falei de política, mas pontuei como os lobos vestiam pele de cordeiro ao raiar do dia e mascaravam suas ações malignas através de palavras vazias e frases de efeito que todo mundo comprou. Não falei de política, mas refleti como o Vidente, que tinha o poder de descobrir quem era quem durante seus sonhos, resolveu jogar para o lado que mais lhe convinha e saiu espalhando fakenews durante as discussões diurnas. Não falei de política, mas expliquei como um dos lobisomens fez uma jogada fantástica ao se sacrificar, porque o resto da turma estava começando a desconfiar dele e de sua matilha e essa morte-cortina-de-fumaça veio para distrair essas especulações. Não falei de política, mas mostrei que a Criança Curiosa escolheu não fazer nada para não arriscar o próprio pescoço, mesmo tendo o poder de espiar durante a noite. Não falei de política, mas falei como as aparências enganam e em como é assustador olhar para aquele colega legal e simpático em todas as discussões do dia estava empenhadíssimo no complô de te apunhalar pelas costas assim que você fechava os olhos. Não falei de política, mas mostrei como o voto pode ser questão de vida ou morte.
 
Ufa!
 
A primeira vez que joguei Lobisomem eu tinha dezesseis anos e estava com meus colegas de Mocidade da casa espírita. Depois de um fim de semana cheio de atividades, sentamos no alto da escadaria da Catedral Metropolitana da cidade e eu fui apresentada a ele. Depois disso, repassei a prática aos meus amigos do teatro e, por mais de meia década, nos reuníamos quase todos os fins de semana para horas intermináveis de jogatina e lanche coletivo no terraço da minha casa. Trazer isso para a minha aula naquele momento muito específico foi me lembrar com carinho de quem eu era, de que eu ainda existia e resistia, apesar do ambiente hostil e das imposições do tempo e da vida adulta. Foi como encontrar sentido de novo, mesmo que por um segundo, em estar em sala de aula e ter a certeza que, daquela vez, eu fiz minha parte e fui a educadora que eu sempre sonhei em ser. Foi um vento fresco de esperança numa vida que estava triste e opaca. Foi constatar que, apesar de cansada, não deveria deixar de me infiltrar nas brechas que apareciam porque era assim, e somente assim, que eu conseguiria me fazer ouvir, apesar dos cále-ses diários que tentavam me empurrar goela abaixo.
 
Nessa terça não teve remédio, só a esperança de que amanhã haveria de ser um outro dia.

11 comentários:

Unknown disse...

Maravilhoso!

Unknown disse...

Parabéns pelo texto!

Anônimo disse...

Maravilha de texto, Márjori!

Unknown disse...

"eu não falei de política" foi sensacional! Parabéns! Que texto,!

Anônimo disse...

Excelente texto, como sempre! Também amo essa escritora e já sigo no Instagram ��

Unknown disse...

Orgulho define♡♡♡

Marian disse...

Delicioso de ler, excelente texto!

Anônimo disse...

Parabéns pelo texto e por ser esse exemplo de educadora!

Neide Marinho disse...

Quanta potência, perspicácia, inteligência e grande educadora!

Táfnys Contarato disse...

Excelente texto!❤Adorei! ��

Arthur Marins disse...

Incrível como você transmite emoções em suas palavras, Marjori! Fico muito satisfeito sempre ao ler seus materiais! Parabéns mais uma vez!

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